A SUPREMACIA HIERÁRQUICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
André L. Borges Netto Advogado. Mestre e Doutorando em Direito do Estado (PUC/SP). Professor Universitário. 1 – Constituição entendida como Lei Fundamental Constituição é ato do poder constituinte originário, sendo a fonte inicial de todo o ordenamento jurídico pátrio. A importância de seu estudo reside na reconhecida superioridade hierárquica de suas normas em relação às demais normas que constam de nosso direito positivo ou do nosso sistema jurídico-positivo (conjunto de atos normativos expedidos pelo Estado). O Estado da idade contemporânea tem como principal característica o fato de ser um ente político com um governo institucionalizado. Toda nação politicamente organizada (Estado), em decorrência dessa institucionalização, deve ter sua forma de organização pré-estabelecida, para que o exercício do Poder possa ser limitado. Com esse tipo de noção é que surgiu a idéia de se impor ao Estado uma regulamentação, de se criar uma lei que o estruturasse, uma lei que lhe desse organização, enfim, uma Constituição que lhe assegurasse estabilidade e permanência. Delimitando a estrutura dos órgãos de governo e estabelecendo os direitos fundamentais dos seres humanos, a Constituição assume o importante papel de “esteio firme das instituições” (na feliz expressão de Goffredo Telles Junior), conferindo unidade e coerência a uma determinada ordem nacional, na medida em que é respeitada. A garantia da existência dessas regras, com a aplicação das mesmas, é que dão certeza e segurança jurídica aos indivíduos do Estado que as adote, fazendo prevalecer a existência de um “governo de leis e não um governo de homens” (“rule of law, not of men”), ideal comum que deve ser perseguido por todos os povos e nações. É bem verdade que somente a Constituição seria insuficiente para limitar o exercício do poder político, corriqueiramente de feições absolutistas. Daí entenderem os seus próprios criadores que “a simples existência da Constituição ainda era pouco, pois um governante com excesso de poder teria a possibilidade de alterar ou mesmo de anular as regras constitucionais que atrapalhassem suas ambições. Por isso foram além e se apegaram à idéia da distribuição do poder entre vários órgãos, acatando a observação de Montesquieu segundo a qual só o poder contém o poder”. Tal aspecto foi bem captado pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari, que busca as finalidades da Constituição, no mundo atual, na necessidade da existência de “um instrumento político-jurídico superior, que declare os direitos fundamentais de todos os indivíduos e que, ao mesmo tempo, estabeleça as regras de organização social e as limitações ao uso dos poderes políticos e econômicos, impedindo que a sociedade se componha de dominantes e dominados”. Constituição, portanto, vista como documento jurídico que abriga no seu seio as normas supremas da comunidade, por ser documento jurídico que contém normas superiores às demais, que submete governantes e governados ao seu império, servindo de limite jurídico ao Poder, vem a ser, na definição abrangente de Dalmo de Abreu Dallari, “a declaração da vontade política de um povo, feita de modo solene por meio de uma lei que é superior a todas as outras e que, visando a proteção e a promoção da dignidade humana, estabelece os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivíduos, dos grupos sociais, do povo e do governo”. Assim, por conter normas que dão estrutura (organização) ao Estado, normas que estabelecem a forma de elaboração das outras normas e que fixam os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivíduos, é que a Constituição passa a ser reconhecida como Lei Fundamental, por ser a base de todo o direito positivo da comunidade que a adote, em especial naqueles países que possuem um sistema jurídico baseado na lei escrita, sobrepondo-se aos demais atos normativos por estar situada no vértice da pirâmide jurídica que representa idealmente o conjunto de normas jurídicas vigentes em determinado espaço territorial. Um ponto é certo: a Constituição é o complexo de normas fundamentais de um dado ordenamento jurídico, ou a ordem jurídica fundamental da comunidade, como diz Konrad Hesse, acrescentando, ainda, que “a Constituição estabelece os pressupostos da criação, vigência e execução das normas do resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente seu conteúdo, se converte em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade em seu conjunto, no seio do qual vem a impedir tanto o isolamento do Direito Constitucional de outras parcelas do Direito como a existência isolada dessas parcelas do Direito entre si mesmas”. Por ser a Constituição, vista aqui no seu conteúdo normativo, “aquele complexo de normas jurídicas fundamentais, escritas ou não escritas, capaz de traçar as linhas mestras do mesmo ordenamento”, é que se dá a ela a denominação de Lei Fundamental, porque nela é que estão exarados os pressupostos jurídicos básicos e necessários à organização do Estado, além da previsão das regras asseguradoras de inúmeros direitos aos cidadãos, colocando-se, em razão disso, como base, ponto de partida e fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio. É o que, com palavras bem mais precisas e elegantes, tem ensinado nosso mestre Celso Ribeiro Bastos, ao analisar a questão da inicialidade fundamentante das normas constitucionais: “Como sobejamente conhecido, as normas constitucionais fundam o ordenamento jurídico. Inauguram a ordem jurídica de um dado povo soberano e se põem como suporte de validade de todas as demais regras de direito. São normas originárias, fundamentantes e referentes, enquanto que as demais se posicionam, perante elas, como derivadas, fundamentadas e referidas. Aquelas de hierarquia superior, e estas, logicamente de menor força vinculatória”. O jusfilósofo Hans Kelsen, por sua vez, ao dissertar sobre a Constituição no exercício do papel de fundamento imediato de validade da ordem jurídica, explica o porquê de tal raciocínio: “O Direito possui a particularidade de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se por forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda — em certa medida — o conteúdo da norma a produzir. Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior; a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior”. Considerada dessa maneira, a Constituição é a referência obrigatória de todo o sistema jurídico, inclusive dela própria, uma vez que estabelece no seu próprio corpo as formas pelas quais poderá ser reformada (por intermédio do processo de emenda ou de revisão, na atual Carta Magna brasileira), daí surgindo a noção de hierarquia entre as normas jurídicas, de tal sorte que normas de grau superior são as que constam das Constituições (Constituição Federal, Constituições dos Estados-Membros e Leis Orgânicas Municipais, sendo que as duas últimas também se submetem à primeira) e normas de grau inferior são as veiculadas por intermédio de leis ordinárias, leis complementares, medidas provisórias etc. O tema sobre hierarquia e superioridade das normas constitucionais, porém, merece ser tratado separadamente, para que se tenha oportunidade de verificar os seus múltiplos aspectos, visando encontrar a diferença entre as normas constitucionais (de escalão superior) e as demais normas existentes no sistema (de escalão inferior). 1.1 – Superioridade das normas constitucionais Como visto anteriormente, a Constituição é o documento jurídico mais importante na vida um Estado, por ser a sua lei soberana e que funda toda a ordem jurídica, pondo-se como suporte de validade de todas as normas jurídicas da comunidade e sendo a matriz de toda e qualquer manifestação normativa estatal. Disso decorre a circunstância de que todos os demais atos normativos de um determinado ordenamento jurídico devem estar em conformidade com a Constituição, sob pena de sua invalidade. Dessa indiscutível unidade que as normas constitucionais propiciam ao sistema normativo, surge a noção de superioridade de uma norma em relação às demais. É dizer: todas as normas que vêm abaixo da Constituição (chamadas normas jurídicas infraconstitucionais) estão obrigadas a enquadrar-se às normas constitucionais, tanto sob o aspecto da sua criação (procedimento), como quanto ao aspecto do seu conteúdo, pois as normas constitucionais é que conferem validade às demais normas existentes no sistema. Esta circunstância é que nos leva a constatar que a ordem jurídica pode ser visualizada por intermédio de uma construção escalonada de diferentes níveis de preceitos normativos, onde a Constituição ocupa o vértice da pirâmide que representa esta mesma ordem jurídica. Em razão dessa superioridade, devem ser extirpados do ordenamento jurídico em que exista uma Constituição em vigor quaisquer atos contrários a ela que tenham a pretensão de produzir efeitos jurídicos, inexistindo lugar, inclusive, para regras jurídicas que pretendam ser superiores à própria Constituição ou que, sendo normas constitucionais originárias, sejam inconstitucionais. Digno de menção é este trecho da lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira: “A Constituição ocupa o cimo da escala hierárquica no ordenamento jurídico. Isto quer dizer, por um lado, que ela não pode ser subordinada a qualquer outro parâmetro normativo supostamente anterior ou superior e, por outro lado, que todas as outras normas hão-de conformar-se com ela. “A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela”. Assim sendo, toda e qualquer norma, seja de direito público, seja de direito privado, que contrariar comando constitucional, será tida por inconstitucional, sendo norma inválida perante o sistema normativo, devendo ser expulsa do mesmo de acordo com os mecanismos processuais existentes (controle da constitucionalidade difuso e concentrado). À supremacia das normas constitucionais todas as demais normas devem adequar-se. Mais uma vez é Hans Kelsen quem bem explica a propalada superioridade hierárquica da Constituição, ensinando-nos que “a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental pressuposta. A norma fundamental — hipotética, nestes termos — é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”. Ademais, as normas constitucionais têm uma especialidade no regime jurídico da sua elaboração e modificação que as diferenciam das demais normas, qual seja, a existência de um procedimento especial de elaboração legislativa, que se caracteriza pela maior solenidade e complexidade de seus atos. Segundo Celso Ribeiro Bastos, esta complexidade “pode consistir em múltiplos fatores: a criação de um órgão legislativo com a função especial de elaborar a Constituição, chamada Assembléia Constituinte; a exigência de um quorum especial, mais expressivo que o requerido pelas leis ordinárias, e de votações repetidas e distanciadas temporalmente; ou, ainda, a sujeição do projeto de lei Constitucional à aprovação popular”. Partindo da noção de maior complexidade no procedimento tendente a modificar a Constituição, surge a oportunidade de classificá-la em rígida, semi-rígida e flexível. Rígida é a que não pode ser modificada da mesma maneira que as leis ordinárias, por demandar um processo de reforma mais complexo e solene. Semi-rígida é a que parte de suas normas podem ser alteradas da mesma forma como são alteradas as leis ordinárias, submetendo-se as demais ao processo mais rigoroso previsto na própria Constituição. De outro lado, flexível é aquela que não exige nenhum requisito especial de reforma, podendo, por conseguinte, ser emendada ou revista pelo mesmo processo que se emprega para a produção ou revogação da lei ordinária. Em se tratando da atual Constituição do Estado Federal brasileiro, dúvidas não há de que a mesma, sob o aspecto formal, é de natureza rígida. Isto porque é nítida a diferença no procedimento de elaboração, por exemplo, das leis ordinárias, e aquele adotado para a reforma da própria Constituição (emenda e revisão), que pode ser assim demonstrado: leis ordinárias são aprovadas por maioria simples em um só turno de votação; emendas precisam de três quintos dos votos para serem aprovadas em dois turnos; a revisão, por fim, será realizada tendo por votação a maioria absoluta do Congresso Nacional, em sessão unicameral.