INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI 9.649/98, NA PARTE QUE ALTERA O REGIME JURÍDICO DO

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Luciano Furtado Loubet Bacharel em Direito ([email protected]) INTRODUÇÃO A Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998, em seu art. 58, trouxe modificações significativas no regime jurídico dos conselhos de fiscalização de profissões (excetuando a Ordem dos Advogados do Brasil), determinando que a partir de sua vigência, estas entidades passariam a regerem-se pelo regime de direito privado, atuando por delegação do poder público. O “caput” do dispositivo em questão, prevê: “Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.” Esta norma jurídica introduz outro elemento na já controversa e discutida natureza jurídica de tais entidades, rompendo com a doutrina que as classifica como pessoas jurídicas de direito público. A inovação perpetrada, ao ser analisada à luz das disposições constitucionais, evidencia-se completamente inválida, por ser contrária implicitamente à Carta Magna. O presente estudo tem por finalidade analisar, — ao menos sinteticamente, sem pretensão de ingressar a fundo nas discussões que o tema pode gerar, — alguns aspectos das inovações trazidas pelo legislador, tentado confrontá-las com os conceitos básicos de Direito Administrativo e Constitucional, para traçar algumas características do novo regime instituído. PODER DE POLÍCIA COMO PARTE DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA DO ESTADO O instituto do poder de polícia, apesar de ser relativamente antigo, possui conceituação ainda não sedimentada completamente na doutrina, já que suas características são variáveis em cada Estado, estando intimamente ligado à ideologia de governo que rege o sistema (autoritário, liberal, etc…). Contudo, há elementos peculiares que permitem uma delimitação, possibilitando o seu conhecimento através do estudo destas particularidades. O doutrinador Ruy Cirne Lima, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello, aponta tais traços característicos: “… são traços característicos da atividade de polícia: a) provir privativamente de autoridade pública, donde se excluir de seu âmbito a reclusão compulsória do louco, promovida por parente, por exemplo; b) ser imposta coercitivamente pela Administração, pelo quê nela não se alberga o direito de vizinhança, ainda quando as imposições dele decorrentes sejam asseguradas de modo coativo, mas por injunção do Judiciário, provocado, como é óbvio, pelo particular interessado; c) abranger genericamente as atividades e propriedades, daí escapam de seu campo os monopólios fiscais, posto que beneficiam a uma só atividade ou patrimônio, ao invés de favorecerem as atividades ou patrimônios em geral.” (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 9ª ed., p. 508 – grifo nosso) Dentre as características citadas, a mais relevante para efeito deste estudo, é a de que o Poder de Polícia provém de uma autoridade pública. O instituto “poder de polícia” acentua-se como umas das várias facetas de atuação do Estado, sendo noção inseparável do conceito de administração conforme ensina Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Enquanto aspecto específico do poder estatal, o poder de polícia é uma manifestação peculiar caracterizada pela restrição e pelo condicionamento impositivo do exercício dos direitos fundamentais; enquanto atividade da Administração, é uma das cinco modalidades pelas quais o Estado atua na prossecução dos interesses que estão a seu cargo.” (Curso de Direito Administrativo, Forense, p. 337 – grifo nosso) Outro não é o entendimento da professora Odete Medauar, que destaca como característica essencial do poder de polícia o fato de ser uma atividade administrativa, nos termos da seguinte lição: “É possível arrolar algumas características nucleares do poder de polícia: a) É atividade administrativa, isto é, conjunto de atos, fatos e procedimentos realizados pela Administração.” (Direito Administrativo Moderno, RT, 2º ed., p. 349 – grifo nosso) Até mesmo na doutrina estrangeira podemos observar que este traço nuclear pode ser encontrado, conforme deixa acentuado o jurista alemão, Fritz Fleiner, ao expressar o seguinte: “Por lo tanto, la policía no es hoy en día una función pública independiente; es, sencillamente, un sector determinado de la actividad de la Administración pública, a saber, la acti idad de la autoridad en el terreno de la Administración interior, que impone coactivamente a la liberdad natural de la persona y a la propiedad del ciudadano las restricciones necesarias para lograr el mantenimiento del Derecho, de la seguridad y del orden público.” (Instituciones de Derecho Administrativo, Editorial Labor S/A, Traduzido por Sabino A. Gendin, 1933, p. 312/313 – grifo nosso) Esta noção de polícia ligada intimamente ao Estado, como atividade puramente administrativa, não escapou aos estudos do jurista argentino Rafael Bielsa, que deixou apontada tal vinculação: “El poder de policía ha existido siempre en el Estado, cualquiera haya sido su naturaleza jurídica y la índole de sus funciones en punto a la realización de los fines sociales. Así ha tenido un carácter amplio de política interior (concepción originaria de la policía como gobierno), y luego ha sido una institución esencialmente administrativa, primero de administración jurídica del Estado, y luego de administración social. La idea del Estado es inseparable de la de policía. Y precisamente por esto importa el concepto de poder de policía en toda Constitución, ley o jurisprudencia, tanto en lo que concierne a su naturaleza y extensión como al carácter jurisdiccional de su ejercicio.” (Derecho Administrativo, Ed. “El Ateneo” Tomo IV, 1947, Buenos Ayres, p. 02/03 – grifos nossos) Após breve consulta aos grandes mestres da matéria percebemos que a concepção de polícia é inerente ao próprio Estado, de tal sorte que o conceito de ambos é inseparável, inexistindo dúvidas que a atividade administrativa não pode ser entendida de forma completa sem que conste como elemento esse componente de poder fiscalizador e regulador. INDELEGABILIDADE DO PODER DE POLÍCIA Tratando-se de atributo inerente à administração pública, e por conseqüência da noção de Estado, o poder de polícia tem suporte Constitucional, já que a Carta Magna ao atribuir ao Poder Executivo a função de administrar, implicitamente, está lhe outorgando a também aquela atividade. O fundamento constitucional do poder de polícia foi defendido por Rafael Bielsa, ao noticiar que a ausência de disposição expressa nunca chegou a levantar qualquer discussão séria sobre o assunto, conforme pode-se perceber do seguinte trecho de sua obra: “El poder de policía no ha sido establecido expresamente en la Constitución, pero como él es de la esencia de todo gobierno, su falta de determinación en forma expressa no ha motivado jamás cuestión ni duda seria.” (ob. cit., p. 03) Ora, se a Constituição – como carta de competência que é – atribui a um Poder do Estado o exercício do poder de polícia, e não dispõe de maneira expressa a possibilidade de delegação desta incumbência, é de se concluir que tal competência é indelegável por lei infraconstitucional. Para chegar-se a esta conclusão não é preciso um raciocínio muito aprofundado; basta atentarmos para o fato de que, se a Constituição atribui uma certa competência a alguém, e não prevê delegação, é forçoso concluir que nenhuma norma de hierarquia inferior poderia alterar esta atribuição, sob pena de inconstitucionalidade, já que tal lei estaria alterando matéria preestabelecida pelo Texto Superior. O jurisconsulto José Cretella Júnior, já observou esta característica de indelegabilidade do Poder de Polícia, nos termos da lição transcrita: “O primeiro elemento, de obrigatória presença, na definição de polícia é o que se refere à fonte de que provém: o Estado, ficando, pois, de lado qualquer proteção de natureza particular já que o exercício do poder de polícia é indelegável.” (Curso de Direito Administrativo, Forense, 7ª ed., p. 588 – grifo nosso) Diante de tais considerações, tratando-se de atributo da administração, não é lícito ao poder legislativo delegar a entidades de direito privado, mediante lei, parcela do poder de polícia que deveria ser por ela exercido, e se assim o fizer, incorrerá em manifesta inconstitucionalidade. Ademais, no caso específico da fiscalização das profissões, a Constituição Federal é expressa ao dizer que a organização, manutenção e execução da inspeção do trabalho, deve ser feita pela União, pressupondo-se no caso, ser essa sua atividade própria. Para tanto, confira-se o disposto no art. 21, XXIV, com a presente redação: “Art. 21. Compete à União:… XXIV – organizar, manter e executar a inspeção do trabalho;” Note-se que não há qualquer ressalva no dispositivo sobre a possibilidade de delegação desta função, constando expressamente que a União deve executar a inspeção do trabalho, sendo portanto inviável a transferência desta atividade para qualquer outro ente, mesmo que mediante lei ordinária. DIFERENÇA ENTRE SERVIÇO PÚBLICO E PODER DE POLÍCIA O art. 58, da Lei nº 9.649/98, em várias passagens qualifica a fiscalização das profissões exercida pelos conselhos como “Serviço Público”, razão pela qual impõe-se a diferenciação entre este instituto e a atribuição de polícia do Estado. Para melhor distinção entre os dois institutos, é imprescindível a verificação do conceito de “serviço público” que no caso, é transmitido pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello, com magnificência: “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo.” (ob. cit., p. 423) “Conclui-se, pois, espontaneamente, que a noção de serviço público há de se compor necessariamente de dois elementos, (a) um deles, que é seu substrato material, consistente na prestação de utilidade ou comodidade fruível diretamente pelos administrados; o outro, (b) traço formal indispensável, que lhe dá justamente caráter de noção jurídica, consiste em um específico regime de Direito Público, isto é, numa “unidade normativa”. (ob. cit., p. 425) Portanto, para que se caracterize “serviço público” é necessário a presença do substrato material – comodidade fruível diretamente pelo administrado; e substrato formal – ser o serviço prestado em regime de Direito Público. Ora, o legislador ao “qualificar” a atividade de fiscalização de profissões como serviço, inobservou estas duas características essenciais, primeiro, por não haver qualquer comodidade ou benefício decorrente de tal atuação estatal, e segundo, em decorrência da própria determinação prevista no artigo em estudo, por não ser a atuação regida pelo regime do Direito Público. O referido mestre depois de acentuar que às vezes há confusão entre estes dois institutos, traça de forma objetiva a diferença entre eles, nos termos da lição abaixo: “A distinção entre serviço público e polícia administrativa, entretanto, é óbvia. Basta atentar para o fato de que um e outra têm sentidos, direcionamentos, antagônicos. Enquanto o serviço público visa a ofertar ao administrado uma utilidade, ampliando, assim, o seu desfrute de comodidades, mediante prestações feitas em prol de cada qual, o poder de polícia, inversamente (conquanto para a proteção do interesse de todos), visa a restringir, limitar, condicionar, as possibilidades de sua atuação livre, exatamente para que seja possível um bom convívio social. Então, a polícia administrativa constitui-se em uma atividade orientada para a contenção dos comportamentos dos administrados, ao passo que o serviço público, muito ao contrário, orienta-se para a atribuição aos administrados de comodidades e utilidades materiais.” (ob. cit., p. 430) Não se argumente que pelo fato de o legislador haver atribuído um nome equivocado ao instituto, deve ele seguir o regime que o nome lhe sugere, pois, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “É óbvio que uma relação jurídica não se identifica meramente pelo fato de estar batizada de um ou de outro modo, mas pelo conjunto de normas proposto para regulá-la. Sem embargo, é lícito presumir que, ao ser nominada de tal ou qual maneira, o intérprete deverá pressupor que foi referida segundo a acepção técnica que lhe é própria, com inerentes conseqüências; isto é: com o regime jurídico pertinente. Donde, quando se percebe que a disciplina atribuída a uma dada relação jurídica não corresponde à nominação técnica que lhe foi dada, diz-se que recebeu qualificação imprópria, justamente por estar-se perante uma figura diversa da que corresponderia à sobredita nominação (recebida esta na conformidade de seu sentido técnico corrente).”(ob. cit., p. 493 – grifo nosso) Conclui-se, à toda evidência, que a atividade de “fiscalização” atribuída à União pela Constituição Federal, não pode ser considerada como “serviço público”, pois inquestionavelmente trata-se de poder de polícia. NATUREZA JURÍDICA DOS “CONSELHOS FISCALIZADORES DE PROFISSÃO” A rigor o legislador é livre para criar quaisquer figuras ou entidades do direito, existindo no sistema jurídico apenas uma barreira a esta liberdade: a Constituição Federal. Diante disto, pode o legislador inserir no sistema jurídico quaisquer modificações que entender úteis ou necessárias, impondo-se como limites apenas as diretrizes constitucionais. No que pertine diretamente aos “Conselhos Fiscalizadores de Profissão” em decorrência do que foi exposto sobre a indelegabilidade do poder de polícia que exercem, parece-nos inadmissível que o legislador atribua a tais entes o regime jurídico de “entes regidos pelo direito privado”. Assim, esta “atividade” só pode ser exercida diretamente pela União, ou, conforme deixaremos ressaltado, através de autarquias criadas por ela, já que as entidades autárquicas nada mais são do que o Estado dotado de personalidade jurídica diversa. Note-se que a discussão sobre a natureza destes conselhos é amplamente controvertida, não havendo qualquer unanimidade sobre o assunto, porém, filiamo-nos à corrente daqueles que entendem serem tais órgãos Autarquias, ou seja, pessoas jurídicas de direito público, que apesar de ter personalidade jurídica diversa do ente que a criou, agem como longa manus do Estado, a despeito de terem algumas características diversas das demais autarquias. Sustentamos esta posição, levando em consideração o conceito de autarquia elaborado por Hely Lopes Meirelles, que as define como “entes administrativos autônomos, criados por lei, com personalidade jurídica de direito público interno, patrimônio próprio e atribuições estatais específicas.” (Direito Administrativo Brasileiro, RT, 14ª ed., p. 300) Este posicionamento já foi defendido por Américo L. M. Lacombe, ao lecionar o seguinte: “Os Conselhos Federal e Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia são autarquias dotadas de personalidade jurídica de direito público, constituindo assim um serviço público federal (art. 80 da lei n. 5.294, de 24.12.1966)” (RDP 19/357) Por outro lado, há manifestações jurisprudenciais neste sentido, conforme pode-se observar do seguinte julgado: “CONFLITO DE COMPETÊNCIA – Execução fiscal – Conselho de Fiscalização do Exercício Profissional – Natureza jurídica – Autarquia federal – Competência da Justiça Federal – Inteligência dos arts. 21, XXIV e 109, I da CF. Processo civil. Conflito de competência. Conselhos Regionais. Os Conselhos Regionais das diversas profissões têm natureza jurídica de autarquias federais, a cumprir o art. 21, XXIV, da CF, segundo o qual cabe à União “organizar, manter e executar a inspeção do trabalho”. Quando tais entes forem autores, réus, assistentes ou oponentes, exceto nas causas falimentares, acidentárias, eleitorais e trabalhistas, a competência é da Justiça Federal (CF, art. 109, I)” (RT 686/189) Advogamos a tese de natureza autárquica de tais entes, também baseados no fato de que a atividade por eles exercida, é privativa do poder estatal, e, conforme foi ressaltado pelo mestre Hely Lopes Meirelles, “as autarquias prestam-se à realização de quaisquer serviços públicos típicos, próprios do Estado, mas são indicadas especificamente para aqueles que requeiram maior especialização, ou imposição estatal, e que, conseqüentemente, exijam organização adequada, autonomia de gestão e pessoal especializado, liberto da burocracia comum das repartições centralizadas.” (Direito …, p. 303) Ademais, os atos praticados pelos “Conselhos” são atos de império, próprios de quem atua em uma atividade eminentemente pública, outra característica indisfarçável das autarquias, além do fato de exercerem tais atividades em nome próprio. Estas características são realçadas por Hely Lopes: “A autarquia não age por delegação; age por direito próprio e com autoridade pública, na medida do jus imperii que lhe foi outorgado pela lei que a criou. Como pessoa jurídica de direito público interno, a autarquia traz ínsita para consecução de seus fins, uma parcela do poder estatal que lhe deu vida.” (Direito …, p. 301- grifo nosso) Outra peculiaridade que mostra de forma clara que os entes fiscalizadores de profissão não podem ser considerados pessoas de direito privado, é o vínculo existente entre eles e os profissionais fiscalizados. Ora, o vínculo entre os conselhos e os profissionais não tem natureza contratual, de “avença de vontades”, mas sim de natureza impositiva, unilateral, própria de entes Estatais. Note-se que um profissional não procura o seu “conselho” para firmar um contrato, atuando com liberdade de vontade como se o fizesse com uma associação qualquer, mas sim é compelido a fazê-lo, por imposição legal, sendo condição imprescindível, a autorização dada pelo órgão para o exercício da profissão. Assim sendo, após traçadas estas características, resta demonstrado que a fiscalização das profissões é uma atividade privativa da União, que pode exercê-la mediante criação de entidades autárquicas, que em verdade são o próprio estado atuado com personalidade diversa. É certo que a natureza jurídica de uma dada entidade não é decorrência da nomenclatura que a lei lhe impõe, mas sim do regime jurídico a que se sujeita. Portanto, apesar de o art. 58, da Lei 9.649/98, haver atribuído “regime de direito privado” a estes conselhos, ao traçar as novas diretrizes que devem ser seguidas, deixou transparecer a natureza autárquica deles, ao estabelecer o seguinte: “Art. 58. … … § 6º Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, por constituírem serviço público, gozam de imunidade tributária total em relação aos seus bens, rendas e serviços. … § 8º Compete à Justiça Federal a apreciação das controvérsias que envolvam os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, quando no exercício dos serviços a eles delegados, conforme disposto no caput.” Ora, o legislador ao atribuir estas “prerrogativas” nada mais fez do que se trair, demonstrando que, em verdade, tais entidades são autarquias, podendo ser englobadas com facilidade no art. 150, § 2º, da Constituição Federal que estende a imunidade a elas, e no art. 109, I, que dispõe ser o seu foro o da Justiça Federal. Após estas exposições, conclui-se que o legislador incorreu em manifesta inconstitucionalidade ao pretender atribuir regime privado aos Conselhos, que devem reger-se pelo regime de direito público, próprio de autarquias que são, devendo ser desconsideradas as “prerrogativas” de entes privados criadas pela lei em questão. NATUREZA JURÍDICA DAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS PAGAS PELOS PROFISSIONAIS AOS CONSELHOS Outra questão tormentosa sobre este tema é a que se refere à natureza jurídica dos valores pagos pelos profissionais, havendo grande divergência sobre a essência deste pagamento. O respeitável professor Paulo Luiz Netto Lôbo, ao comentar o estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, defende a tese de que tais valores não têm natureza tributária, fixando-se nestes argumentos: “Essas contribuições não têm natureza tributária, inclusive e sobretudo por que não se destinam a compor a receita pública.” (Comentários ao Estatuto da Advocacia, Brasília Jurídica, 2ª ed., p. 189) A despeito de todo o respeito que temos pelo respeitável professor, não concordamos com o posicionamento por ele adotado, especialmente, em razão do art. 4º, II, do CTN, dispor ser irrelevante para qualificar a natureza jurídica do tributo a destinação legal do produto de sua arrecadação. Ora, o fato de não se destinar à compor receita pública é irrelevante para descaracterizar a contribuição paga pelos profissionais como figura tributária. Ademais, tal pagamento se amolda com perfeição à noção de tributo prevista no art. 3º do CTN, que estabelece ser tributo toda prestação pecuniária compulsória, em moeda, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Assim, estas parcelas exigidas pelos Conselho Fiscalizadores tem natureza tributária, sendo instituídas com fundamento no art. 149 da Constituição Federal, que atribui à União instituir contribuições de interesse das categorias profissionais, com instrumento de sua atuação nas respectivas áreas. Não é outro o entendimento de Ruy Barbosa Nogueira, em ensinamento, verbis: “Na doutrina brasileira são chamados de ‘contribuições parafiscais’ e são exemplos as arrecadações de institutos de intervenção e direção da economia, como do Instituto do Açúcar e do Álcool; de entidades de categorias profissionais como os sindicatos, a Ordem dos Advogados, etc… … Estas ‘contribuições parafiscais’ são, pois, tributos, mas nada têm que ver com a ‘contribuição de melhoria’.” (Curso de Direito Tributário, Saraiva, 9ª ed., p. 181) A despeito de terem as “contribuições parafiscais” natureza tributária constitucionalmente determinada (art. 149), devendo respeitar inclusive os princípios constitucionais tributários, como o da legalidade e anterioridade, o legislador ordinário no art. 58, § 4º da Lei 9.649/98, dispôs: “Art. 58. … … § 4º Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas …” Parece-nos evidente a inconstitucionalidade do artigo em questão, pois atribuiu aos conselhos o poder de fixar as contribuições a serem pagas, que segundo o art. 149 da CF, é de competência exclusiva da União, restando evidente que esta norma não pode constituir-se validamente no sistema, por ferir frontalmente a Carta Magna. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a demonstração de que os conselhos são autarquias, e que os valores por eles recebidos têm natureza tributária, é de bom alvitre analisarmos o disposto no §5º do art.58, da referida lei, com a seguinte redação: “Art. 58. … … § 5º O controle das atividades financeiras e administrativas dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas será realizado pelos seus órgãos internos devendo os conselhos regionais prestar contas, anualmente, ao conselho federal da respectiva profissão, e estes aos conselhos regionais.” O que se percebe é que o legislador retirou da União qualquer forma de fiscalização de aplicação dos recursos arrecadados pelos conselhos, o que não nos parece ser possível em face da Constituição. Ora, se os valores arrecadados são de natureza tributária, é óbvio que se trata de dinheiro público, que só é atribuído aos conselhos em razão da finalidade pública que exercem, impondo-se desta forma, toda a fiscalização prevista constitucionalmente para a verificação da lisura na utilização destes recursos. Esta fiscalização, aliás, está prevista expressamente no art. 70, parágrafo único da Constituição Federal, verbis: “art. 70. … Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigação de natureza pecuniária.” Assim, novamente foi infeliz o legislador ao dispor de forma contrária à norma fundamental de nosso sistema jurídico. Por último, mesmo que não aceite os pressupostos da tese ora apresentada, entendendo-se que a atividade de fiscalização de profissões é “serviço público”, e que os entes fiscalizadores são pessoas de direito privado como quaisquer outras, existiria uma barreira constitucional intransponível ao art. 58 citado. Ocorre que se entendermos que se trata de serviço público delegado a uma pessoa de direito privado, é imprescindível que tal “delegação” seja feita mediante licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal. Ora, se os conselhos são entidades privadas, e a fiscalização de profissões é serviço público, nada mais justo que se abra licitação para a exploração deste “serviço”, dando-se oportunidade para que outras pessoas jurídicas possam concorrer para a prestação desta atividade. Não se argumente que a lei poderia excluir este processo licitatório, pois como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, a “existência da pertinente autorização legislativa produzida nas distintas esferas competentes (federal, estadual, municipal e distrital), como é óbvio, não libera a Administração para escolher, a seu líbito, o concessionário que deseje. Deverá proceder a uma licitação a fim de que se apresentem os interessados, selecionando-se aquele que oferecer condições mais vantajosas. É o que, como já se disse, está expressamente previsto no dantes mencionado art. 175 da Constituição.” (ob. cit., p. 457 – grifo nosso) Assim, as conseqüências de se caracterizar os conselhos como entidades privadas prestadoras de um serviço público delegado, como fez o art. 58 da Lei 9.649/98, são muito mais catastróficas do que reconhecer a sua personalidade de direito público de natureza autárquica que atuam como longa manus do Estado.