O ALISTAMENTO E A AUTORIDADE MORAL DO PRONUNCIAMENTO POPULAR

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Carlos Magno Couto, advogado criminalista em Mato Grosso do Sul. Num processo crime de homicídio qualificado, extremamente rumoroso envolvendo este novo sujeito social chamado Sem Terra, sobreveio interessante situação jurídica. Na data do crime ocorrido numa comarca interiorana do Estado de Mato Grosso do Sul, a Juíza de Direito do lugar, viu-se por coincidência na cena dos fatos quando da localização do corpo da vítima, assassinada a golpes de foice. Julgando-se destituída de imparcialidade por haver se “emocionado com o lado humano da tragédia”, invocou aquela autoridade judiciária espontaneamente motivo legal que a impedia de exercer jurisdição no processo. Contudo, inobstante haver declarado expressamente seu impedimento e remetido o processo ao Juiz substituto, a referida magistrada, ainda assim, houve por bem na qualidade de Juíza de Direito e Presidente do Tribunal do Júri daquela Comarca, em alistar, através de edital, sob sua responsabilidade e mediante escolha por conhecimento pessoal ou informação fidedigna os jurados que reuniam as condições clausuladas na legislação aplicável. Diante desse procedimento da magistrada, surge a questão motivadora desta reflexão, – poderia aquela autoridade judicante promover o alistamento dos cidadãos que serviram no Tribunal do Júri, no caso, no julgamento daquele processo em que espontaneamente se julgara impedida? Desafiando argumentos, na sua grande maioria abonatórios deste proceder, por não considerá-lo atividade de cunho jurisdicional, particularmente, penso que na espécie que a reflexão focaliza, a resposta tem de ser negativa. Isso porque, como ensina Júlio Fabbrini Mirabete, em sua obra intitulada Código de Processo Penal Interpretado, página 182, 4ª edição, editora Atlas : ” Não há no nosso direito positivo processual uma clara distinção entre as hipóteses de suspeição, incompatibilidades e impedimentos. Pode-se dizer, porém, que, enquanto a suspeição decorre do vínculo do juiz com qualquer das partes, o impedimento resulta da relação de interesse do juiz com o objeto do processo, é um obstáculo à competência”, autorizador por corolário indeclinável que os atos eventualmente praticados sejam considerados inexistentes, não podendo ser sanados. O art. 439 do Código de Processo Penal, dispondo sobre o alistamento anual das pessoas que servirão no Tribunal do Júri, estabelece a seguinte regra processual: “Anualmente, serão alistados pelo juiz-presidente do júri, sob sua responsabilidade e mediante escolha por conhecimento pessoal ou informação fidedigna, trezentos a quinhentos jurados no Distrito Federal e nas comarcas de mais de cem mil habitantes, e oitenta a trezentos nas comarcas ou nos termos de menor população. O juiz poderá requisitar às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas a indicação de cidadãos que reúnam as condições legais”. Já o Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado de Mato Grosso do Sul, prevê em seu artigo 81, alínea “a”, o seguinte: “Art. 81 Aos juízes de direito compete a jurisdição: I – do Júri e, no exercício dela a) organizar o alistamento dos jurados e proceder, anualmente, à sua revisão;” A par do conteúdo dos mencionados dispositivos legais, saliente-se que a todo cidadão a Constituição assegura, expressa e tacitamente, o “due process of law”, ao afiançar que ninguém pode ser privado da garantia de um Juízo natural, isto é, de um julgamento isento e imparcial, podendo o processo, diante de eventual violação desta garantia constitucional, ser anulado, especialmente, se não há preclusão, em matéria de nulidade, no que diz respeito à incompetência, suspeição, ou suborno do juiz. Note-se que a imparcialidade dos julgados é assegurada pelas leis que determinam como se verifica a escolha de Jurados, e pelos princípios que fundamentam o impedimento e a suspeição. Assim, releva dizer, que o impedimento do juiz atinge frontalmente a relação processual e cria nulidade insuperável. O Estado, no exercício do chamado jus puniendi, não interessa apenas que as sentenças sejam justas, antes de tudo, impõe-lhe prover no sentido de que não as tolde a mácula da menor desconfiança, por afetar a autoridade moral dos julgados. Nesse sentido TJSP, Ap. Crim., rel. Des. Acácio Rebouças, RT 452/ 348. Moral, que segundo Rui Barbosa, não se inventou senão para modelar os grandes, proteger os pequenos, refrear os ricos, abrigar os pobres, conter os fortes e garantir os fracos. Quem se declara sem isenção para oficiar em determinado processo, não possui competência para escolher por conhecimento pessoal ou informação fidedigna os julgadores definitivos da causa, sob pena de desvirtuamento de obediência às regras do “devido processo” que constitui requisito essencial para a correção da prestação jurisdicional, mormente porque, nas nulidades absolutas o vício atinge o próprio interesse público. No mais, sobreleva notar, no terreno da controvérsia aqui agitada, a enorme possibilidade de influência que pudesse vir a ser desencadeada pela magistrada que impedida de oficiar legalmente num feito tão rumoroso, tão cheio de percalços e preconceitos, ainda assim, por conhecimento pessoal ou informação fidedigna viesse a interferir no processo, escolhendo, carente de competência, os juízes populares que iriam decidir a causa naquela pequena Comarca. Ela que impedida de jurisdicionar e, portanto, desimpedida de opinar, discutir e comentar, com todo o prestígio de que era rodeada na Comarca, a respeito daquele fato que reconheceu como sendo uma “tragédia” e que lhe teria destituido da natural imparcialidade, que caracteriza a judicatura. Nesse contexto, é de se concluir, que o ponto em enfoque, comporta nulidade de caráter absoluto, sobretudo porque, nenhuma desconfiança pode afetar a autoridade moral dos pronunciamentos judiciais.