O NOVO PROCESSO PENAL BOLIVIANO
Walter Mendes Garcia Advogado em Corumbá/MS O procedimento penal boliviano passou, recentemente, por mudanças radicais, na procura de uma melhor qualificação da justiça pátria, na consolidação do sistema democrático e no aperfeiçoamento do estado de direito, segundo o processualista Willian Herrera Añez. Inspirados nas reformas ocorridas na Alemanha em 1964 e1975, com a eliminação da instrução criminal da reforma como era realizada e o descarte do sistema inquisitivo, fizeram com que Portugal (1987) e Itália (1988) aderissem ao novo procedimento, transformando o promotor em dono da investigação. Essa transformação que estava sendo analisada por muitos países, antes de atingir a Bolívia, foi agasalhada pela Argentina e pela Costa Rica, depois de estudos realizados na procura de um modelo processual para a iberoamérica. Na Bolívia, para acolher esse novo sistema processual, primeiramente foi restabelecido o estado democrático de direito, sem o qual impossível seria a implantação do moderno procedimento. Não que o estado democrático tenha ocorrido com essa finalidade, absolutamente, pois sua origem assentou-se na vontade popular ao livrar-se, em outubro de 1982, em definitivo, de governos espúrios surgidos de forma não democrática. Vivendo assim, a partir daí, num estado pleno de direito, com governantes eleitos pelo povo, fácil foi a promulgação, pelo congresso, de leis necessárias para o acolhimento, hoje, do novo procedimento penal. Dentro desse arcabouço de leis e modificações constitucionais destinadas a tornar viável o novo procedimento criminal, é criada a Defensoria Pública, com a finalidade de prestar assistência jurídica aos carentes até então desassistidos de defesa. O Ministério Público teve definidas as suas atribuições, continuando a proteger, defender e preservar os direitos fundamentais e o devido processo legal e, também, passou a controlar a ação policial, porque ficou a seu cargo o comando das investigações, assumindo a responsabilidade da prova. A direção da investigação policial está esculpida em preceito constitucional, advindo com a reforma de 1994, anterior, portanto, ao acolhimento do novo ordenamento penal. A par desses dois instrumentos imprescindíveis, o primeiro criado e o segundo com uma nova dimensão, cambiando princípios seculares arraigados no ordenamento que foi substituído, ainda foi erigida a lei da liberdade provisional (Lei 1.685/96), proibindo a detenção imotivada e colocando fim ao arbitrário poder discricional do juiz do processo, limitando-se assim a prisão do indivíduo ao tempo indispensável a apuração da verdade e resolvendo o grave problema da retardação da justiça no sistema penal, espelhada dentro dos presídios com um percentual enorme de detentos sem condenação. Quando da reforma constitucional de 1994, a criação das instituições contidas no Título Quarto, através dos artigos 119, 122 e 127, deram a todos uma certeza de que se pretendia realmente uma modificação estrutural no sistema penal boliviano, atribuindo ao Tribunal Constitucional, em única instância, o poder de resolver todos os assuntos sobre a inconstitucionalidade de ordem jurídica. O Conselho da Judicatura nasceu como um órgão administrativo e disciplinário do poder judiciário, integrado por quatro membros de ilibada conduta, com título de advogado, sendo esta a fórmula que o legislador encontrou para instituir o controle externo do poder judiciário. A Defensoria do Povo veio, em suma, para velar pela vigência e cumprimento dos direitos e garantias da pessoa humana. Por decreto, foi eliminada a intervenção do poder executivo no recurso de revisão extraordinária de sentença condenatória transitada em julgado; assim também foi abolido, por lei, o abuso de direito em manter preso um indivíduo que houvesse cumprido a pena de prisão mas que ainda não tivesse ressarcido os danos econômicos causados ao ofendido; a concessão do indulto para menores e anciães presos também foi objeto de proteção legal. Não foi assim por acaso que se optou pela substituição do procedimento penal na Bolívia, nem pelo canto da modernidade ou por sugestão alienígena, mas ocorreu em razão da constatação, na prática e através de discussões profundas no seio da sociedade, da falência do procedimento punitivo que se achava em vigor. A justiça, quase sempre, chegava tardiamente, redundando, inexoravelmente, em injustiça. O descrédito foi alcançado por um somatório de fatores de natureza diversa, qual seja: falta de respeito aos direitos humanos; incremento da impunidade; inoperância da polícia judiciária; sobrecarga de processos na justiça de todas as instâncias e no país todo; péssimo desempenho do Ministério Público; corrupção; nepotismo e outras mazelas de origem administrativa. A Constituição Política da Bolívia, reformulada, garantiu as mudanças introduzidas no novo código de processo penal, causando, no entanto, em razão desse reboliço, algum traumatismo no sistema penal, mas isso é puramente compreensível, não só pelo da troca do sistema inquisitivo pelo sistema acusatório, consolidando o juízo oral e assim universalizando o direito de defesa, mais ainda pela introdução do instituto do jurado, que nunca antes aportou no procedimento penal boliviano, permitindo-se a participação popular na administração da justiça. Entendo que para a fixação dessa desconhecida figura jurídica, entre nós brasileiros tão decantada mas que cuida apenas dos crimes cometidos contra a vida, há de ser, com o passar dos tempos, um instituto essencial na boa distribuição da justiça. Essas mudanças são deveras difíceis de serem absolvidas de logo, primeiro, por questão cultural e, finalmente, por escassez de condições técnicas, econômicas e base doutrinária e jurisprudencial pátria. Porém, pior do que romper essas dificuldades, seria a manutenção daquela estrutura penal falida, rançosa e impossível de ser controlada.