STF examina nova fórmula para desafogar o Judiciário
Uma nova fórmula para desafogar o Judiciário sem criar novas leis nem fazer reformas está sendo examinada no Supremo Tribunal Federal. O mecanismo, mediante aprovação de um incidente de uniformização, permitiria responder, de uma só vez, avalanches de recursos provenientes dos mais de dez mil Juizados Especiais Federais espalhados pelo país. A possibilidade, afirma o ministro Gilmar Mendes em voto recente, está inscrita na Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, nos artigos 14 e 15. No artigo 14 se lê que caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. De acordo com o artigo 15, “o recurso extraordinário, para os efeitos desta lei, será processado e julgado segundo o estabelecido nos §§ 4º a 9º do art. 14, além da observância das normas do Regimento.” Saiba o entendimento de Gilmar Mendes sobre o assunto: Med. Caut. em Recurso Extraordinário 376.852-2 Santa Catarina RELATOR : MIN. GILMAR MENDES RECORRENTE(S): INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL – INSS ADVOGADO(A/S): MIGUEL ÂNGELO SEDREZ JUNIOR RECORRIDO(A/S): ANTÔNIO PIRES ADVOGADO(A/S): GERSON BUSSOLO ZOMER E OUTRO(A/S) Ementa: Recurso extraordinário. 2. Declaração de inconstitucionalidade, por Turma Recursal, de dispositivos que regulamentam o reajuste de benefício previdenciário. 3. Alegada violação ao art. 201, § 4º, da Constituição Federal. Princípio da preservação do valor real dos benefícios. 4. Concessão de medida liminar para suspensão dos processos que versem sobre a mesma controvérsia. Arts. 14, § 5º, e 15, da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001 – Lei dos Juizados Especiais Federais. 5. Inviabilidade de se deferir a liminar, na forma solicitada, pelo menos até a edição das normas regimentais pertinentes. 6. Apreciação do pleito como pedido de tutela cautelar. Atribuição de efeito suspensivo ao recurso extraordinário. 7. Pedido deferido para conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário, até que a Corte aprecie a questão. A C Ó R D à O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria, deferir a liminar, para emprestar eficácia suspensiva ao recurso extraordinário, nos termos do voto do relator. Brasília, 27 de março de 2003. Ministro Marco Aurélio Presidente Ministro Gilmar Mendes Relator RE nº 376.852/SC, julgada em 27.3.03, pelo Plenário do STF. R E L A T Ó R I O O Senhor Ministro Gilmar Mendes – (Relator): Cuida-se de recurso extraordinário, interposto com fundamento no art. 102, III, “a” e “b”, da Constituição Federal, contra acórdão da Turma Recursal da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina, que declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade dos arts. 7º, 8º, 9º, 12 e 13, da Lei nº 9.711, de 20 de novembro de 1998; do art. 4º, §§ 2º e 3º, da Lei nº 9.971, de 18 de maio de 2000; do art. 17, da MP nº 2.187-13, de 24 de agosto de 2001, e do art. 1º do Decreto nº 3.826, de 31 de maio de 2001. O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com base nos arts. 14, § 5º, e 15, da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, requer a concessão de medida liminar “para que se suspendam todos os processos nos quais a mesma controvérsia jurídica dos presentes autos esteja estabelecida, acerca da constitucionalidade dos atos normativos que definiram os reajustes dos benefícios previdenciários entre 1997 e 2001, em face do artigo 201, § 4º, da Carta Magna”. É o relatório. Med. Caut. Em Recurso Extraordinário 376.852-2 Santa Catarina V O T O O Senhor Ministro Gilmar Mendes – (Relator): A Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, estabeleceu as seguintes regras aplicáveis ao recurso extraordinário interposto contra decisão das turmas recursais dos juizados especiais: “Art. 14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. § 1º O pedido fundado em divergência entre Turmas da mesma Região será julgado em reunião conjunta das Turmas em conflito, sob a presidência do Juiz Coordenador. § 2º O pedido fundado em divergência entre decisões de Turmas de diferentes Regiões ou da proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ será julgado por Turma de Uniformização, integrada por Juízes de Turmas Recursais, sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal. § 3º A reunião de juízes domiciliados em cidades diversas será feita pela via eletrônica. § 4º Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência. § 5º No caso do § 4º, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. § 6º Eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça. § 7º Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias. § 8º Decorridos os prazos referidos no § 7º, o relator incluirá o pedido em pauta na Seção, com preferência sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os “habeas corpus” e os mandados de segurança. § 9º Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no § 6º serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça. § 10 Os Tribunais Regionais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando a composição dos órgãos e os procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização e do recurso extraordinário. Art. 15. O recurso extraordinário, para os efeitos desta lei, será processado e julgado segundo o estabelecido nos §§ 4º a 9º do art. 14, além da observância das normas do Regimento.” Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual “a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, dotado de uma “dupla função”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo” (Peter Häberle, O recurso de amparo no sistema germânico, Sub Judice 20/21, 2001, p. 33 (49). Essa orientação há muito mostra-se dominante também no direito americano. Já no primeiro quartel do século passado, afirmava Triepel que os processos de controle de normas deveriam ser concebidos como processos objetivos. Assim, sustentava ele, no conhecido Referat sobre “a natureza e desenvolvimento da jurisdição constitucional”, que, quanto mais políticas fossem as questões submetidas à jurisdição constitucional, tanto mais adequada pareceria a adoção de um processo judicial totalmente diferenciado dos processos ordinários. “Quanto menos se cogitar, nesse processo, de ação (…), de condenação, de cassação de atos estatais — dizia Triepel — mais facilmente poderão ser resolvidas, sob a forma judicial, as questões políticas, que são, igualmente, questões jurídicas”. (Triepel, Heinrich, Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, VVDStRL, Vol. 5 (1929), p. 26). Triepel acrescentava, então, que “os americanos haviam desenvolvido o mais objetivo dos processos que se poderia imaginar (Die Amerikaner haben für Verfassungsstreitigkeiten das objektivste Verfahren eingeführt, das sich denken lässt) (Triepel, op. cit., p. 26). Portanto, há muito resta evidente que a Corte Suprema americana não se ocupa da correção de eventuais erros das Cortes ordinárias. Em verdade, com o Judiciary Act de 1925 a Corte passou a exercer um pleno domínio sobre as matérias que deve ou não apreciar (Cf., a propósito, Griffin. Stephen M., The Age of Marbury, Theories of Judicial Review vs. Theories of Constitutional Interpretation, 1962-2002, Paper apresentado na reunião anual da “American Political Science Association”, 2002, p. 34). Ou, nas palavras do Chief Justice Vinson, “para permanecer efetiva, a Suprema Corte deve continuar a decidir apenas os casos que contenham questões cuja resolução haverá de ter importância imediata para além das situações particulares e das partes envolvidas” (“To remain effective, the Supreme Court must continue to decide only those cases which present questions whose resolutions will have immediate importance far beyond the particular facts and parties involved”) (Griffin, op. cit., p. 34). De certa forma, é essa visão que, com algum atraso e relativa timidez, ressalte-se, a Lei nº 10.259, de 2001, busca imprimir aos recursos extraordinários, ainda que, inicialmente, apenas para aqueles interpostos contra as decisões dos juizados especiais federais. Anote-se, porém, que a ênfase conferida pelo legislador brasileiro à decisão das turmas de uniformização acabou por prejudicar o alcance da norma em apreço, no que diz respeito à possibilidade de concessão de medida liminar destinada a suspender os processos nos quais a controvérsia constitucional esteja estabelecida (art. 14, § 5º c.c. art. 15 da Lei nº 10.259, de 2001). É até provável que esse incidente não venha a ter qualquer aplicação aos casos de declaração de inconstitucionalidade pelo órgão recursal dos juizados especiais federais. De qualquer sorte, pelo menos até a edição das normas regimentais de que tratam os arts. 14, § 10 e 15 da Lei nº 10.259, de 2001, tendo em vista as razões expostas, não vislumbro, s.m.j., a possibilidade de se deferir a liminar solicitada na forma do art. 14, § 5º, da aludida Lei. O próprio recorrente afirma ser incabível o Incidente de Uniformização e, conseqüentemente, inaplicáveis os arts. 14 e parágrafos e 15, da Lei nº 10.259, de 2001: “…não há, no momento, precedentes favoráveis à Autarquia em quaisquer das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais, seja na mesma Região ou em outra, e nem no Superior Tribunal de Justiça, sendo que a matéria sequer foi apreciada ainda pelo STJ. Logo, não se mostra viável, ainda, a interposição de pedido de uniformização, seja regional, seja nacional, pois estes dependem, como visto, da existência de jurisprudência favorável, ao qual, ao menos por enquanto, não há. Da mesma forma, também não é admissível o Incidente de Uniformização ao Superior Tribunal de Justiça, previsto no § 4º do artigo 14, da Lei 10.259/2001, pois este só é cabível contra acórdão da Turma de Uniformização, de âmbito nacional, a qual, como visto acima, não pode ser atualmente acionada, por falta de paradigmas favoráveis em Turmas Recursais de outras Regiões ou do STJ.” Não há, pois, cogitar da aplicação das normas da Lei nº 10.259, de 2001, na espécie. Entendo, porém, que, presentes os pressupostos de admissibilidade, pode o aludido pleito ser apreciado como pedido de tutela cautelar destinado a conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário. Examino a questão. A decisão recorrida negou provimento ao recurso do INSS, de acordo com os seguintes fundamentos: “Do que foi exposto até o momento, podemos extrair as seguintes conclusões: a) Em junho do ano de 1995 (MP 1.053, de 30.06.95), o IPC-r foi extinto e substituído pelo INPC para os fins previstos no § 6º do artigo 20 (indexação de valores pagos com atraso pela previdência) e no § 2º do artigo 21 (correção dos salários-de-contribuição considerados no cálculo do salário-de-benefício) da Lei 8.880/94; b) A partir de maio de 1996 (por força da redação dada pela MP 1.415, de 29.04.96 ao art. 8º da MP 1.398, de 11.04.96), o IGP-DI substituiu o INPC para os fins previstos no § 6º do artigo 20 (indexação de valores pagos com atraso pela previdência) e no § 2º do artigo 21 (correção dos salários-de-contribuição considerados no cálculo do salário-de-benefício) da Lei 8.880/94. Tal determinação perdura até hoje; c) na vigência do artigo 29 da Lei 8.880/94 os benefícios mantidos pela Previdência Social deveriam ser reajustados, a partir de 1996, inclusive, pela variação acumulada do IPC-r nos doze meses imediatamente anteriores, nos meses de maio de cada ano; d) por força da MP 1.415, de 29.4.96 (depois convertida, neste particular, na Lei 9.711, de 18.05.2000), que revogou o artigo 29 da Lei 8.880/94 e trouxe novas disposições em seus artigos 2º e 4º, os benefícios mantidos pela Previdência Social foram reajustados, em 1º de maio de 1996, pela variação acumulada do Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna – IGP-DI, apurado pela Fundação Getúlio Vargas, nos doze meses imediatamente anteriores; e) por força desta mesma MP (1.415, de 29.04.96) estabeleceu-se que os reajustes dos benefícios passariam a ocorrer, a partir de 1997, inclusive, em todo mês de junho; f) também por força desta mesma MP (1.415, de 29.04.96) deixou de existir um índice definido para o reajustamento dos benefícios, os quais foram reajustados posteriormente segundo critérios aparentemente aleatórios; g) a partir de 1º de junho de 2001, inclusive (MP nº 2.022-17, de 23.05.00) os benefícios em manutenção passaram a ser reajustados com base em percentual definido em ato administrativo (regulamento).” Assim, considera violado “o princípio da preservação do valor real duplamente. Primeiro, porque limita indevidamente o benefício já na origem pela não atualização correta das faixas de salários-de-contribuição. Segundo, porque o reajustamento aplicado aos benefícios acaba muitas vezes sendo feito por índice inferior ao utilizado para a atualização dos salários-de-contribuição no período básico de cálculo, implicando redução do valor real também no processo de revisão periódica”. O recorrente sustenta, de forma concisa, ser “cediço que a Constituição Federal, em seu artigo 201, § 4º, atribuiu expressamente à lei tanto a possibilidade de estabelecer os critérios de reajustamento do valor dos benefícios, quanto para escolher os fatores de correção a serem utilizados para preservar o valor real dos mesmos. Desta maneira, são normas infraconstitucionais que caracterizam a preservação do valor do benefício”. E, quanto ao permissivo da alínea “b” do inciso III do art. 102 da Constituição Federal, especificamente, afirma: “Parece claro que, desde que haja decisão judicial de última instância que declare a inconstitucionalidade de lei federal, é cabível recurso extraordinário, nos termos do artigo 102, III, “b”, da Constituição Federal, a fim de que o Supremo Tribunal Federal aprecie a correção, no caso concreto, desta decisão, sem que possa essa Eg. Corte esquivar-se de sua função constitucional sob o argumento de que a violação à Constituição é reflexa”. De fato, no RE nº 219.880/RN, rel. Min. Moreira Alves, D.J. de 6.8.1999, a 1ª Turma decidiu que o art. 201, § 4º, da Constituição “deixou para a legislação ordinária o estabelecimento dos critérios para essa preservação. E, para isso, a legislação tem adotado indexadores que visam a recompor os valores em face da inflação, não dando margem, evidentemente, à caracterização da inconstitucionalidade dela a alegação de que, pela variação que pode ocorrer entre esses índices pelo critério de sua aferição, se deva ter por inconstitucional um que tenha sido menos favorável que o outro. Para essa declaração de inconstitucionalidade seria mister que se demonstrasse que o índice estabelecido em lei para esse fim é manifestamente inadequado, o que não ocorre no caso. Da mesma forma, no RE nº 313.982/SC, rel. Min. Maurício Corrêa, Plenário, D.J. de 8.11.2002, afastou-se a ofensa ao princípio constitucional que assegura o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes o valor real (art. 201, § 4º, da CF), em razão de se entender que o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS teria observado as regras estabelecidas na legislação vigente. Cuidava-se de pleito formulado em face do INSS com vistas à revisão da sistemática de conversão da renda mensal do benefício para Unidade Real de Valor – URV, instituída pelo art. 20 da Lei nº 8.880, de 1994, bem como à aplicação do respectivo valor do mês de setembro de 1994 do percentual de aumento conferido ao salário-mínimo. Assim, em um primeiro e provisório exame, afiguram-se plausíveis os argumentos em favor da legitimidade das normas questionadas. É certo, outrossim, que a não-concessão do efeito suspensivo, na espécie, poderá causar danos significativos à organização e à administração da instituição e ao próprio patrimônio da Previdência Social, especialmente se se considerar o número expressivo de casos existentes e um possível efeito multiplicador da decisão. Nesses termos, com fundamento no princípio da eventualidade e no poder geral de cautela, defiro efeito suspensivo a este recurso extraordinário, até que a Corte aprecie a questão. É o meu voto.