OAB/MS presta homenagem a advogados que lutaram contra a ditadura

Como forma de reconhecimento pelo exercício da advocacia durante o regime militar, os advogados Wilson Barbosa Martins e Antônio de Araújo Chaves foram homenageados pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso do Sul (OAB/MS) com a comenda “Para não repetir – 50 anos do Golpe Militar”. A homenagem, oferecida pelo Conselho Federal da OAB, foi entregue durante a sessão do Conselho Seccional, nesta sexta-feira (27), acompanhada por familiares dos homenageados, conselheiros e diretoria da OAB/MS.
“Líderes da advocacia, que souberam resistir ao Golpe de 64, com dignidade e coragem”, assim os advogados foram classificados pelo conselheiro Carlos Magno Couto, que proferiu uma emocionante homenagem aos laureados. Carlos Couto continua: “Para mim, é um prazer viver com dois titãs da advocacia sul-mato-grossense na hora de suas grandezas, aqui neste solo historicamente democrático em que floresce o espírito da liberdade, cuja ordem é resistir contra todo e qualquer ato antidemocrático”.
Wilson Barbosa Martins foi o primeiro presidente da Seccional Mato Grosso do Sul da OAB, durante o período de 1979 a 1891 e foi governador do Estado. Já Antonio de Araújo Chaves foi vice de Wilson na primeira gestão seccional e o primeiro presidente da Caixa de Assistência dos Advogados. Ambos sofreram atentados em sua liberdade durante o regime militar: Martins perdeu seu mandato de deputado federal e teve seus direitos políticos suspensos sem prévia defesa, e Chaves foi condenado e preso.
“É uma triste memória do nosso Estado que não pode ser esquecida jamais, pois eterniza para a classe advocatícia a representação da resistência e da luta destes nobres homens em favor da defesa da democracia, acima de tudo”, destacou o presidente da OAB/MS, Júlio Cesar Souza Rodrigues, que indicou os homenageados ao presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Coêlho Furtado. A comenda, entregue também pelo vice-presidente da OAB/MS, Mansour Elias Karmouche, faz parte das homenagens feitas pela instituição para rememorar os 50 anos do golpe militar no Brasil, como uma forma de relembrar o passado para que as mesmas situações não voltem a acontecer no País.
Filhos dos homenageados acompanharam a cerimônia e agradeceram à OAB/MS pelo reconhecimento conferido aos seus pais. Thais Martins, filha de Wilson Barbosa Martins, recebeu a comenda em seu nome e agradeceu emocionada pela homenagem. “Sou honrada em ser filha do ilustre homem que é meu pai, que aos 97 anos enfrenta um dos momentos mais difíceis da vida. É um bálsamo para o seu coração poder relembrar o quanto foi guerreiro pela democracia”. O sobrinho de Wilson Martins, Marcelo Barbosa Martins, que é ex-presidente da OAB/MS, também esteve presente à cerimônia.
Marco Chaves, filho de Antonio de Araújo Chaves, destacou a dificuldade enfrentada pelas pessoas que lutaram durante o regime militar. “Serve como motivação para as pessoas que empreendem uma luta na defesa da democracia, pois a atuação em regimes de exceção é uma batalha difícil e quem se propõe a enfrentar essas dificuldades está representado nesta homenagem”.
Confira na íntegra o discurso do conselheiro seccional Carlos Magno Couto
Ser designado pelo Presidente desta Seccional para saudar os advogados Wilson Barbosa Martins e Antonio de Araujo Chaves, nesta cerimônia de condecorações por suas participações na luta contra um regime sombrio que havia aniquilado a ordem democrática no país e os sonhos de liberdade de gerações de brasileiros, me impele a repetir a célebre frase romana: “Vedere Nápoli può morire”, “ver a baía de Nápoles e só depois morrer”, para em seguida plagiá-la dizendo: homenagear esses patrimônios da memória da Ordem, comparável a qualquer monumento de herói e, só depois morrer.
A memória é seletiva. Na minha ficaram o Dr. Wilson Barbosa Martins e o Dr. Antonio de Araujo Chaves, que sempre estiveram no fundo do meu olhar, sendo certo que não há caminho para chegar até eles, visto que constituem verdadeiras escolas inaugurais de cidadania que serviram também, de certa forma, como fonte de inspiração para a formação da identidade cultural daquele que viria a ser o autêntico homem sul-mato-grossense.
Os livros autobiográficos “Janela da Historia” e “Lidando com a Vida”, dos dois homenageados, estão nas estantes do meu coração. São livros que fazem história, obrigando-nos a uma leitura em voz alta e com o respeito devido aos clássicos.
A vida de ambos condensa toda uma época, são advogados sínteses que enfeixam toda a história de nossa Ordem como verdadeiros firmamentos da razão humana.
Os homenageados estão entre os nomes dos advogados que a Ordem guardou, notadamente, como proclamou alhures o grande Raymundo Faoro, porque a ditadura militar lhes reservou o título supremo de mártires das liberdades e dos direitos do homem.
Aprendi desde cedo e também através do maior orador forense do Brasil moderno, Edilson Mougenot Bonfim, que a “história não fala dos covardes”. Daí a homenagem da gloriosa Ordem a esses líderes da advocacia que souberam resistir ao “golpe de 64”, com dignidade e coragem. Essa coragem que é uma das poucas virtudes humanas que não comporta simulação, pois como dizia Charles Chaplin: “uma vida não é nada, com coragem pode ser tudo”.
Quando li o livro dos dois homenageados senti nos olhos, como o escritor Cony, o peso morno das lágrimas que não desceram impedidas pelo calor das minhas faces sanguíneas que desde a minha infância receberam no inverno destas terras avermelhadas os açoites desse vento leste, “vadio e aragano”, que costuma varrer em prosa e segredo este grande campo.
Para mim, é um prazer viver com dois titãs da advocacia sul-mato-grossense na hora de suas grandezas, aqui neste solo historicamente democrático em que floresce o espírito de liberdade, cuja ordem é resistir contra todo e qualquer ato antidemocrático, venha de quem vier, visto que, ninguém está legitimado para desrespeitar a Constituição da República e os valores superiores consagrados nos Estatutos da ordem democrática, onde, aliás, como ensina Yhering, a concepção do Direito encerra uma antítese, visto que a paz é o fim do Direito e a luta o meio de obtê-lo.
Os homenageados resistiram ao “golpe de 64”, que nos dizeres de um grande vulto da Suprema Corte, Ministro Celso de Mello, “promoveu uma ruptura do processo constitucional, o declínio das liberdades públicas e o estigma da submissão a uma ordem destituída de legitimidade”, tendo o Dr. Wilson Barbosa Martins, em razão do referido “golpe” perdido o seu mandato de deputado federal e os seus direitos políticos suspensos sem prévia defesa e o Dr. Antonio de Araujo Chaves, condenado e preso, por uma falsa justiça, por defenderem com galhardia a liberdade do Brasil, sem qualquer vacilação, porque sabiam que as dificuldades são passageiras e, somente a desistência ou a renuncia são para sempre.
Assim foi a luta dos nossos homenageados por uma história que honrasse o Brasil, onde a consciência ferida dos homenageados tocou a pedra da paixão, como no testemunho da Presidente Dilma Rousseff, quando entre soluços, declarou: “se existem filhos sem pais, se existe pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz”.
O amor dos homenageados pela liberdade fulge no meu peito, reavivando em mim as sábias palavras de Jorge Amado, quando ele diz:
“Difícil é viver uma vida de sofrimento e de luta, sem desanimar e sem desistir, sem se vender, sem se curvar”, porque meus amigos Conselheiros, o amor pela humanidade, que animou os homenageados de hoje, se transfundem também em nós e nos encorajam à luta.
Em 1967 foi o Dr. Wilson, reconduzido para um segundo mandato como deputado federal representando o sul do estado. Em seus pronunciamentos na Câmara Federal sempre se posicionou frontalmente contra o governo militar, confira-se: “(…) Neste país, devemos ser fiéis, hoje e sempre à democracia, à República e à federação (…). Nesta hora, em que se busca por todos os meios intimidar o Congresso Nacional, para a votação sem emendas de leis impopulares, só resta uma posição: a de resistência. Não queremos provocar, mas não devemos capitular. Se não afrontamos o poder executivo, não admitimos que a honra dos deputados e que a dignidade do Congresso sejam postos em jogo. Temos, neste instante, a última oportunidade talvez de mostrar altanaria aos que nos querem humilhar. Não queremos, evidentemente, sucumbir como poder político. O nosso perecimento significaria perda do regime de liberdade. Mas… de que valeria a sobrevivência de uma instituição que faltasse ao dever de lutar em defesa da plenitude das suas prerrogativas? De que valeria a preservação dos mandatos, cujos titulares se omitissem nas horas de perigo ou de ameaça?”.
Segundo Wilson Barbosa Martins: “os meus colegas advogados de MS quando, dez anos depois, em 30 de novembro de 1978, me elegeram para a presidência da OAB neste estado, sabiam muito bem que embora eu estivesse cassado dos meus direitos , em verdade, não estava cassado, porque não cometi crime na representação política que recebi dos eleitores nem fui julgado com processo no qual pudesse oferecer prévia defesa. A investidura na presidência da Ordem valeu como a maior e a melhor prova de que a cassação nada exprimia em detrimento de minha conduta”. Continuando escreveu: Minhas relações políticas sofreram grande desgaste em função da cassação, inclusive com a perda de amizades. Certa vez, eu subia a pé a rua 14 de julho e avistei um amigo que, a me ver, mudou de calçada. Coisas da vida… Porém, à medida que avançava o tempo, desapareciam os melindres(…). Até que sobreveio a divisão do estado, e, após ela, em 1982, a primeira eleição direta para o cargo de chefe do executivo estadual. Fiz-me candidato e fui eleito governador, com a missão de trazer as reformas pelas quais o povo sempre lutou”.
Este é Wilson Barbosa Martins, que defendendo as liberdades democráticas legou para a leitura do tempo e da história a seguinte frase: “Nunca pude viver em regime de aperturas, sem direitos individuais, sem liberdades, sem tranca aberta”.
No livro “Lidando com a Vida”, Antonio de Araújo Chaves, por sua vez, diz que nunca desfrutou de projeção pública que justificasse interesse coletivo sobre qualquer particularidade da sua vida.
Nessa obra, o Dr. Antonio de Araujo Chaves conta que o golpe de Estado com a conseqüente instituição da ditadura produziu alterações profundas na linha do seu horizonte. A ditadura, disse ele, abriu uma página em branco em minha vida onde eu passei a escrever outra história, jamais imaginada, em um cenário político absolutamente inesperado e adverso, inevitavelmente compartilhado pela Gilma.
Enquanto estudante foi ativista político. Durante o curso superior, representou os estudantes de sua faculdade na congregação dos professores, foi secretário geral e presidente do célebre “Centro Acadêmico Hugo Simas”, representativo dos estudantes de direito da Universidade Federal do Paraná. Permitam-me aqui nessa passagem, rememorar que das conquistas alcançadas pelo meu saudoso tio José Octávio Guizzo, a que mais o honrava era haver pertencido a esse Centro Acadêmico.
Quando exerceu, aos 27 anos de idade, a presidência do “Centro Acadêmico Hugo Simas”, no biênio 66/67 sofreu incontáveis detenções pela polícia incumbida da ordem política e social do estado do Paraná (DOPS), e depois pela então recém criada Polícia Federal.
Para encerrar, relembro ainda um trecho do seu livro onde nosso homenageado historia que pela intensidade do seu envolvimento na luta contra a ditadura, acabou respondendo a dois processos crimes na Justiça Militar do Estado do Paraná, fundados em denúncias que delatavam ter incorrido em crimes previstos na Lei de Segurança Nacional em vigor na época. Tendo sido condenado num dos processos cujo enunciado acusatório descrevia a ação de promover “incitação à animosidade da sociedade civil contra as forças armadas”, pena que cumpriu integralmente, parte no Presídio de Curitiba e parte em Presídio de Campo Grande – MS.
Para aquele advogado recém formado, com o coração e o cérebro transbordando de projetos ambiciosos, diante das notícias da sua condenação viu o seu futuro se esboroar de uma forma prosaica e absurda, pois surgiam diante de si apenas duas opções reais: recolher-se à prisão e começar a cumprir a pena que fora imposta ou homiziar-se por mais de oito anos, tempo necessário para completar o prazo prescricional da pena imposta. Essa notícia, conforme relatou foi-lhe demolidora, soando como um tiro na sua cabeça e pondo fim a todos os seus sonhos.
Angustiava-o, sem alívio, lembrar que havia se preparado em Curitiba para ter um futuro promissor no seu Estado e mal chegava aqui, chegava também uma sentença expedida pela justiça militar da ditadura que varria todos os seus projetos reais além dos devaneios grandiosos daquele jovem idealista.
Depois de um tempo escondido resolveu se entregar para cumprir a pena. Apesar de sua apresentação espontânea, foi algemado com dois fuzis apontados para si e trancafiado dentro do camburão do exército no trajeto da Auditoria até o Presídio. Depois de sete meses de prisão, foi transferido para Campo Grande/MS. Segundo Antonio de Araujo Chaves, aqui, em Campo Grande foi recolhido no antigo presídio civil localizado na Rua da Paz e ali permaneceu por vários meses onde conheceu e se tornou amigo do sargento Baiano (Fidelcino José Rodrigues) diretor do presídio. Fazendo questão de ressaltar que esse cidadão também já falecido, foi muito generoso com ele durante todo o tempo que permaneceu naquela instituição carcerária. Registro, a propósito, que o legendário Sargento Baiano, é pai de nosso Presidente Julio Cesar de Souza Rodrigues, e constitui para mim, um pedaço importante da história mais profunda de nossa terra, que mantenho salva dentro de mim.
Essa prisão injusta de um homem que lutava pela liberdade dos outros, confirma em mim, a certeza de um escrito que li num canto qualquer deste mundo, defendendo que: “a única prisão é o medo. E a única liberdade real é a liberdade de não ter medo”.
Antonio de Araújo Chaves foi entre tantas outras funções o primeiro Presidente da Caixa de Assistência dos Advogados de MS e Vice-presidente na primeira gestão da OAB/MS, cujo Presidente foi Wilson Barbosa Martins.
Essa é, portanto, a resenha digna de uma história de vida, que me comove tanto. É o resumo de uma historia que merecia ser escrita à mão como eram escritas as antigas cartas de amor, enfim, é a história de um menino lidando com a vida, ou como consta do seu livro, do menino de oito anos de idade, semi-nu, vestido apenas com calças curtas e suspensórios do mesmo tecido, galopando o seu cavalo ruano pelos varjões umedecidos pela chuva da fazenda Buriti Alegre. Às vezes uma vaca se desgarrava do rebanho e o desempenho daquela moderada missão de fazê-la retornar ao rodeio infundia-lhe saborosas sensações de vigor, de liberdade, entusiasmo, auto-afirmação, prazer, enfim, da mesma genuína felicidade que era brincar com os seus amigos nas águas do ribeirão do Canindé.
Por essas histórias de vida quero finalizar a missão que me foi confiada a apenas um dia atrás pelo Presidente da OAB/MS, vestindo os nossos homenageados simbolicamente com suas próprias e gloriosas becas que para Ordem dos Advogados do Brasil tem o significado de um manto sagrado.
Muito obrigado.
Plenário da OAB/MS, 27 de Junho de 2014.
Conselheiro Estadual Carlos Magno Couto