A mídia na relação povo-Justiça

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A mídia precisa conhecer bem o Judiciário para informar bem a sociedade. Se houver esse conhecimento, haverá sempre o maior respeito pela magistratura e maior confiança nos juízes. As palavras do novo presidente eleito para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), Celso Luiz Limongi, resumem a importância da interação entre os meios de comunicação e o Judiciário como forma de mostrar à população seus direitos . Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 medidas vêm sendo tomadas nesse sentido. Especialistas concordam que, embora tenham ocorrido avanços, a comunicação ainda é falha. “É clara a necessidade de popularizar o Judiciário e vencer obstáculos como os formalismos, a linguagem rebuscada e a falsa compreensão de que bom juiz é aquele que se distancia da sociedade para julgar melhor”, observa o secretário-geral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto. De olho nas melhorias que a aproximação entre Judiciário e cidadão podem trazer já existe um projeto aguardando aprovação do Ministério das Comunicações, o qual propõe que a TV Justiça passe a ser um canal de TV aberto. De acordo com a coordenadora da TV Justiça, Bethânia Andrade, o pedido foi feito junto ao Superior Tribunal de Justiça (STF) e sugere que a Rádio Justiça passe a ter freqüência própria, já que por enquanto seu alcance se restringe ao Distrito Federal. “É grande a quantidade de e-mails, telefonemas e cartas que recebemos solicitando a exibição da TV Justiça em canal aberto”, informa. No último dia 13, o presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, pôs à disposição de 5 mil prefeitos o sinal aberto da TV Câmara. Para isso, basta que os prefeitos façam uma solicitação junto ao Ministério das Comunicações. Rebelo ofereceu também aos prefeitos a possibilidade de retransmitir os sinais da Rádio Câmara através de sinal digital disponível via satélite. Apesar dessas facilidades a coordenadora da TV Justiça afirma que a linguagem utilizada nessas emissoras, especialmente nos programas jurídicos, continuará dificuldando o acesso do povo a esse tipo de programação. Mesmo quem tem nível superior não consegue compreender o contéudo de tudo o que é dito. Nosso empenho é tornar a linguagem jurídica acessível, mas atrações de grande aceitação no meio jurídico não poderão ser modificadas informa Bethânia. A chefe da Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Justiça, Ligia Kosin, aponta como outro problema a falta de jornalistas especializados em Direito e Justiça. “São poucos os que compreendem bem o funcionamento do Judiciário. Só mesmo quem convive com a estrutura da Justiça dia a dia”, afirma. O advogado constitucionalista Luís Roberto Barroso diz que a proximidade entre a Justiça e o povo vem crescendo desde que foi promulgada a Constituição de 1988. A Justiça deixou de ser um departamento especializado do governo para tornar-se um verdadeiro poder político. A imprensa recuperou a liberdade que havia sido cerceada durante a ditadura e desenvolveu recursos tecnológicos que ampliaram o acesso à informação afirma Barroso. De acordo com o constitucionalista, o Judiciário passou a ocupar mais espaço na mídia, reivindicar verbas e prestar contas à opinião pública. Um dos papéis mais importantes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é justamente dar explicações à sociedade. A Resolução nº 7 aprovada pelo CNJ, que combate o nepotismo nos tribunais, é um exemplo de como a Justiça vem prestando contas à população acredita. O advogado Cezar Britto destaca como uma das principais medidas de aproximação entre a sociedade e o Judiciário a informatização. “Serviços como o disque-processo, que dispensa a ida do cidadão ao cartório para se informar do andamento de uma ação, proporcionaram transparência maior e acesso direto aos autos. Foi um investimento na facilidade de acesso à informação, além de combater a morosidade. Atualmente, não é incomum um cliente chegar ao meu escritório e conversar comigo já sabendo de todas as etapas de seu processo”, diz. Britto destaca o incremento do número de retransmissoras de rádio que passaram a apresentar programas e notícias referentes ao Judiciário. “Essa proximidade vem ajudando a acabar com o distanciamento entre magistrados e a sociedade. E colabora para acabar com a falsa idéia de que bom juiz é aquele não se envolve com as partes e, dessa forma, julga melhor. O magistrado precisa estar integrado com a sociedade para ter elementos para julgar”, avalia. A TV Justiça existe há três anos e, segundo Bethânia Andrade, ainda está distante do povo. Mas a coordenadora da estação de TV admite que o canal é conhecido e disseminado no meio jurídico. “Ainda é uma estação segmentada e não temos medição de audiência. Não posso garantir que seja o melhor veículo de comunicação para fazer o povo entender melhor a Justiça. Mas creio que um dia seremos, sim, por conta do alcance que o veículo vai tomar”, avalia Bethânia. Britto credita aos meios de comunicação a familiarização do cidadão com os conceitos jurídicos mais complexos e a percepção do conceito político de decisões judiciais, quebrando a idéia de que o magistrado é um ser estranho à sociedade. Quando acompanhamos um julgamento no STF, através da TV Justiça, percebemos que um ministro não consegue e nem pode abstrair seus conceitos políticos e ideológicos sobre determinados fatos e direitos. Ainda é pouco, mas é um começo. E exige adaptação dos dois lados, tanto dos magistrados quanto do público. Quando se apresenta ao telespectador, um magistrado ou ministro de tribunal superior tem dois caminhos. Um é o da formalidade exagerada para tentar demonstrar que tem conhecimento, que sabe falar difícil. É preciso acabar com isso. O outro caminho é a popularização da linguagem do Judiciário, considerando-se inclusive a participação popular nas audiências e programas de TV públicos diz o secretário. Britto ressalta que hoje em dia não é incomum, durante as sessões do STF, os ministros recitarem trechos de poemas. “O ministro Carlos Ayres Britto, por exemplo, já citou Carlos Drummond de Andrade e Chico Buarque, o que demonstra vontade de cada vez mais se aproximar do cidadão comum”, afirma. Outro mecanismo moderno de aproximação com a sociedade, diz ele, são os juizados especiais, nos quais a informalidade impera e a prestação de serviços, em sua maioria, é voltada para pessoas de baixa renda. “Mas ainda é pequena a parcela da população que toma conhecimento das decisões do Judiciário através dos meios de comunicação. Somos um país desigual e o cidadão é convidado a fazer uma opção entre a fome real e a fome do saber. E a fome real não pode esperar. O saber fica para “depois do almoço””, afirma. Outra tentativa utilizada desde 1988 para explicar o funcionamento da Justiça ao povo, lembra o advogado, são as cartilhas. “Mas elas funcionam com pequeno alcance porque algumas carregam uma linguagem rebuscada e distante, comum ao Judiciário. A melhor maneira de aproximar a mídia da população é através do incremento do número de programas de televisão, especialmente na TV aberta. Porém, surpreende-me a quantidade de pessoas que acompanha o programa que a OAB tem dentro da programação daTV Justiça”, revela Britto. Em sua opinião, um modelo exemplar de como detalhar os trâmites da Justiça a pessoas de todas as classes sociais e de forma ampla é o programa de rádio Voz do Brasil. É um bom programa, mas poderia ter uma formatação mais moderna. De qualquer forma, alcança, e muito, a população do interior do País. São lugares onde o acesso aos meios de comunicação de massa é mais difícil e, portanto, onde mais se ouve o rádio afirma o advogado. [n]Distribuição de sessões gravadas dá resultado[/n] O secretário-geral da OAB garante que sua entidade vem obtendo resultados surpreendentes desde que resolveu gravar as sessões da Conferência Nacional da Ordem e distribuí-las a diversas emissoras de rádio de todo o País para que as retransmitam. “A repercussão vêm nos surpreendendo e cada vez mais estamos certos de que o rádio é um meio de comunicação de grande alcance”, afirma. Britto não concorda com a forma que os programas de TV aberta utilizam para incentivar os telespectadores a lutar por seus direitos. Isso não tem sido explorado pelas emissoras de TV aberta e, quando o fazem, é malfeito, abusando do sensacionalismo, como ocorre no Programa do Ratinho, no SBT, no quadro que explora os exames de DNA. É claro que todo filho têm o direito ao reconhecimento de paternidade. Mas do jeito que é feito na atração mais parece um circo, tamanha é a palhaça critica. Britto não concorda também com a maneira que as novelas brasileiras abordam o tema que, segundo ele, é de forma fantasiosa, simulando tribunais de júri que não existem no Brasil e estão mais próximos da realidade americana. “É preciso investir mais na comunicação social do que na predial, ou seja, na construção de prédios suntuosos”, calcula o secretário-geral da OAB. Outro exemplo bem-sucedido, na avaliação de Luís Roberto Barroso, são os jornais e revistas femininas que há muito tempo reservam algumas páginas para colunas de perguntas e respostas sobre temas jurídicos. “Além disso, o Judiciário passou a julgar questões importantes para a sociedade e conseqüentemente ganhou mais espaço no noticiário e nos jornais”, observa. Levando em considerações esses e outros aspectos, Barroso acredita que a relação do Judiciário com a mídia acabou gerando dois exemplos de Justiça que deu certo. O primeiro, diz ele, são os Juizados de Pequenas Causas, cujo acesso é amplo e cada vez mais facilitado à população em geral. O segundo, aponta o constitucionalista, são os processos relativos à defesa do consumidor. Desde que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) entrou em vigor, em 1991, o povo passou a ter mais consciência da cidadania e postular com maior freqüência seus direitos. Tudo isso junto gerou um aumento na demanda por Justiça no país analisa Barroso. O advogado e diretor jurídico da Associação Centro de Cidadania em Defesa do Consumidor e Trabalhador (Acecont), Marcos Zumba, pôde constatar tais avanços de perto. Durante nove meses ele foi um dos apresentadores do quadro Chutanto o Balde, exibido na edição carioca do programa Cidade Alerta, da Rede Record. Na atração, o advogado convidava pessoas de classe baixa para expor suas dúvidas, problemas e reclamações contra determinadas instituições e prestadores de serviços e, no fim do quadro, propunha ao entrevistado que, literalmente, chutasse um balde como forma de expressar sua insatisfação. O programa procurava revelar, de forma simples, as irregularidades, injustiças, insatisfações e arbitrariedades que o povo encontra e sofre diariamente. Era uma forma direta de denúncia e de mostrar à população que todos têm que reivindicar seus direitos esclarece. Na avaliação de Zumba, programas como os exibidos na TV Justiça não atingem a maior parte da população. O advogado reconhece a importância da mídia no incremento do número de processos relativos à defesa do consumidor, mas aponta o CDC como uma das maiores conquistas nesse aspecto. Apesar do crescente número desse tipo de ação, ainda está aquém da realidade. Na maioria das vezes o consumidor se sente inseguro em entrar com um processo contra uma loja ou uma grande empresa já que vai enfrentar um litígio que às vezes dura anos. Em algumas ocasiões ele vai encontrar dificuldade em receber assistência jurídica e a demanda acaba reprimida em razão da série de obstáculos que encontra. Por conta disso muitas pessoas desistem de entrar com uma ação, quando deveriam afirma. O diretor jurídico da Acecont admite que a colaboração da mídia tem sido grande e vital para que os consumidores acionem a Justiça em busca de seus direitos. Segundo o advogado, colabora para isso o fato de que todos nascem e morrem consumidores. A relação de consumo acontece na vida de todo mundo a cada instante. Há quem viva uma vida inteira e nunca precise de um advogado criminalista, por exemplo, mas o consumo é uma realidade diária. E a atenção deve ser redobrada nesse setor. A mídia é só uma das ferramentas que tem auxiliado nessa relação. Mas deveriam existir quadros específicos sobre o assunto em diversos programas de televisão. O problema é que nenhuma emissora vai querer fazer isso em horário nobre, por exemplo conclui Zumba. Se todas as tentativas de mostrar à população todos os seus direitos e como lutar por eles, através dos meios de comunicação ou não, um outro problema pode surgir: uma explosão do Judiciário por excesso de demanda. Mas alguns especialistas não encaram esse como um grande obstáculo. “Se tiver que explodir, que exploda! Num país de injustiças como o nosso estamos precisando de um choque de Justiça”, defende Cezar Britto, secretário geral da OAB. Britto observa que o aumento de demanda do Judiciário já vem ocorrendo há algum tempo e é fruto da redemocratização do país e do reconhecimento da importância da população lutar por seus direitos. “Cada vez que um cidadão procura a Justiça em busca de seus direitos quem ganha é o país, porque um país sem Justiça é uma ditadura disfarçada de democracia”, avalia Britto. O advogado Luís Roberto Barroso reconhece o aumento da demanda por Justiça nos últimos anos, assim como a grande dificuldade operacional que isso gerou. “O fato de o Judiciário não conseguir atender a demanda não implica a necessidade de diminuir a informação, mas sim em modificar, aparelhar e aprimorar a estrutura do Judiciário que não estava preparado para atender a uma crescente procura pela Justiça que se criou na rotina brasileira”, conclui o constitucionalista. O diretor jurídico da Acecont concorda com o ponto de vista de Barroso. “Uma coisa é o cidadão ter seus direitos e a outra é o Estado não administrar a demanda. Mesmo que o Judiciário não comporte o número de ações, o cidadão tem, sim, que continuar requerendo seus direitos”, finaliza Zumba.