A PENA DE PERDIMENTO E SEUS VÍCIOS JURÍDICOS

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André L. Borges Netto Advogado constitucionalista em Campo Grande-MS Em nosso labor profissional tivemos a oportunidade de enfrentar a situação que passa a ser revelada. Firma individual regularmente estabelecida em Município do Estado de Mato Grosso do Sul, estando em situação regular perante a JUCEMS, nada devendo à Secretaria da Receita Federal e não tendo nenhum débito inscrito na Dívida Ativa da União, visando incrementar suas atividades comerciais, dirige-se a Corumbá (fronteira com a Bolívia) e adquire de firma ali estabelecida REGULARMENTE (certidão expedida pela JUCEMS confirma este fato) diversas mercadorias (artigos de vestuário). Provou a firma individual, já à época da Defesa apresentada à autoridade fiscal, ter adquirido as mercadorias de firma regularmente estabelecida em Corumbá, com endereço comercial citado no processo, sendo portadora de número de CGC e de Inscrição Estadual, tendo sido expedidas as notas fiscais correspondentes e com o efetivo recolhimento do ICMS devido, inclusive em relação às mercadorias que excederam os limites das notas. Pois bem, fato é que se houve INIDONEIDADE ou MÁ FÉ esta não pode ser debitada à atuação da consulente, mas sim da firma que lhe revendeu a mercadoria, que depois se descobriu que estava mesmo envolvida em situações ilícitas. Como poderia a consulente avaliar e concluir desta forma se chegou em Corumbá pela manhã, adquiriu as mercadorias e retornou de imediato à cidade de origem ? Como se exigir da consulente a fiscalização que está a cargo dos Poderes constituídos e dos agentes policias e fiscais ? Sem menosprezar a conduta do agente que aplicou a pena de perdimento, o que está a ocorrer é uma situação “kafkiana” e absurda, porque se transfere uma obrigação que é do Poder Público a um particular imbuído de BOA FÉ e que estava apenas tentando incrementar suas atividades comerciais (que são lícitas e estão amparadas pela Constituição). O SUPERIOR TRIBUNA DE JUSTIÇA, analisando este assunto de forma absolutamente correta e exemplar, tem produzido uma farta jurisprudência (que já está consolidada), transcrita da forma como segue (cópias das ementas em anexo, extraídas do site www.stj.gov.br): Resp. n.º 90437/DF Recurso Especial (96/0016374-0) “Tributário – Importação – Mercadoria apreendida, sendo declarado seu perdimento – Adquirente de Boa Fé – Empresa alienante que estava regularmente estabelecida – Precedentes da corte – Recurso conhecido e Provido. 1 – A aquisição, no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal emitida por firma regularmente estabelecida para integrar o ativo imobilizado da empresa, gera a presunção de boa fé do adquirente, cabendo ao fisco a prova em contrário. 2 – A Pena de Perdimento não pode se dissociar do elemento subjetivo (inexistente na espécie) tampouco desconsiderar a boa fé do adquirente. 3 – Recurso conhecido e provido.” Resp. n.º 94980/DF Recurso Especial (96/0028124-6) “Tributário. Mercadoria importada. Aquisição no mercado interno. Exibição de nota fiscal. Pena de Perdimento. Inaplicabilidade. A aquisição de mercadoria importada, no mercado interno, com a exibição de nota fiscal fornecida por firma regularmente estabelecida, não autoriza a aplicação da Pena de Perdimento. Cabe ao fisco produzir prova em contrário.” Resp. n.º 102146/DF Recurso Especial (96/0046696-3) “Tributário – Pena de Perdimento – Mercadoria adquirida de comerciante estabelecido de Boa Fé – A Pena de Perdimento não alcança quem adquiriu a mercadoria estrangeira, no mercado interno, de comerciante estabelecido, mediante nota fiscal. O comprador de mercadoria exposta em loja sujeita a fiscalização, não pode ser obrigado a investigar o modo como ela entrou no País. A Pena de Perdimento – Até por ser pena – Não pode abstrair o elemento subjetivo nem desprezar a boa fé.” Resp. n.º 81544/DF Recurso Especial (95/0064101-1) “Tributário – Mercadoria importada adquirida no mercado Interno – Apreensão – Pena de Perdimento – Decreto n.º 91.030, art. 514 – Precedentes STJ. – Aquisição , no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal emitida por firma regularmente estabelecida para integrar o ativo imobilizado da empresa, gera a presunção de Boa Fé do adquirente, cabendo ao fisco a prova em contrário. – Recurso conhecido e provido.” Resp. n.º 79764/DF Recurso Especial (95/0059970-8) “Tributário – Pena de Perdimento – Mercadoria adquirida de comerciante estabelecido – Boa Fé. A Pena de Perdimento – não alcança quem adquiriu a mercadoria estrangeira, no mercado interno, de comerciante estabelecido, mediante nota fiscal. O comprador de mercadoria exposta em loja sujeita a fiscalização, não pode ser obrigado a investigar o modo como ela entrou no país. A Pena de Perdimento – até por ser pena – Não pode abstrair o elemento subjetivo nem desprezar a Boa Fé.” Resp. n.º 11137/PE Recurso Especial (91/0009873-6) “Tributário – Aquisição no mercado interno de mercadoria de procedência estrangeira. Pena de Perdimento. Decreto – Lei n.º 1.455, de 1976. Quem, mediante nota fiscal, adquire, de empresa regularmente estabelecida no mercado interno, mercadorias de precedência estrangeira, não responde por eventual fraude na respectiva importação, salvo prova de que dela participou ou tinha conhecimento. Recurso especial não conhecido.” Resp. n.º 15073/DF Recurso Especial (91/0019833-1) “Tributário – Importação – Apreensão de mercadoria estrangeira adquirida no mercado interno – Pena de Perdimento – Terceiro de Boa Fé. Precedentes – A aquisição, no mercado interno, de mercadoria importada, mediante nota fiscal emitida por firma regularmente estabelecida para integrar o ativo imobilizado da empresa. Gera a presunção de Boa Fé do adquirente, cabendo ao fisco a prova em contrário. Recurso conhecido e provido.” Resp. n.º 23513/RJ Recurso Especial (92/0014581-7) “Tributário – Pena de Perdimento – Mercadoria adquirida de comerciante estabelecido – Boa Fé. A Pena de Perdimento não alcança quem adquiriu a mercadoria estrangeira, no mercado interno, de comerciante estabelecido, mediante nota fiscal. O comprador de mercadoria exposta em loja sujeita a fiscalização, não pode ser obrigado a investigar o modo como ela entrou no País. A Pena de Perdimento – até por ser pena – não pode abstrair o elemento subjetivo nem desprezar a Boa Fé.” Do Boletim IOB de Jurisprudência é extraído outro acórdão no mesmo sentido: “Tributário – Pena de Perdimento – Mercadoria adquirida de comerciante estabelecido – Boa Fé. A Pena de Perdimento não alcança quem adquiriu a mercadoria estrangeira, no mercado interno, de comerciante estabelecido, mediante nota fiscal. O comprador de mercadoria exposta em loja sujeita ‘a fiscalização, não pode ser obrigado a investigar o modo como ela entrou no país. A pena de perdimento – até por ser pena – não pode abstrair o elemento subjetivo nem desprezar a Boa Fé” (STJ – Resp. n.º 102.146/DF – Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros – 1ª Turma – j. 13-03-97, DJU 1 de 14.4.07, p. 12.691, IOB, 1/13517, “Importação – Pena de Perdimento de Mercadorias”). Como se vê, é farta a jurisprudência em reconhecer que O ADQUIRENTE DE BOA FÉ não pode sofrer prejuízo, com a aplicação da pena de perdimento, em relação a mercadorias adquiridas de firma estabelecida no comércio, que emitiu as correspondentes notas fiscais e que está (ou estava) em situação regular perante a JUCEMS e outros órgãos públicos. O que não é correto é transferir a responsabilidade de fiscalização ou mesmo a responsabilidade penal e fiscal de eventual importação irregular a quem adquiriu de boa fé as referidas mercadorias, SEM QUE A RECEITA FEDERAL TENHA PRODUZIDO ALGUMA ESPÉCIE DE PROVA QUE VIESSE A VINCULAR A CONSULENTE À PRÁTICA DAQUELE ILÍCITO. Como a autoridade fiscal não se apercebeu desta verdade absoluta (até pela força dos precedentes do STJ), deve mesmo aquela decisão administrativa ser cassada, sob de continuar prevalecendo algo que é sabidamente INJUSTO e INVÁLIDO JURIDICAMENTE. Aliás, “CONSTITUI COMEZINHO PRINCÍPIO DE DIREITO PENAL (APLICÁVEL ÀS SANÇÕES TRIBUTÁRIAS) QUE NENHUMA PENA PASSARÁ DA PESSOA DO CONDENADO (ART. 5º, XLV, CF), NÃO SE VISLUMBRANDO NO CTN A REMOTA POSSIBILIDADE DE SER ATRIBUÍDA RESPONSABILIDADE A TERCEIRO, NA SITUAÇÃO ENFOCADA” (JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELLO, “Importação – Pena de Perdimento de Mercadorias”, IOB 1/13517). Como esta noção jurídica acabou sendo inobservada, o caminho natural a ser percorrido é o da procedência do deverá ser pleiteado judicialmente. Também não se pode descurar da idéia de que a aplicação da pena de perdimento, especialmente no caso ora versado, veio a ofender, de forma direta e frontal, o princípio constitucional implícito da proporcionalidade ou da razoabilidade, que tem sua existência confirmada pelos princípios do devido processo legal e da isonomia e que exsurge, tal como se sabe, como limite à edição de toda e qualquer norma ou decisão governamental ARBITRÁRIA, IRRAZOÁVEL ou IRRACIONAL, impedindo, em suma, “que as discriminações legislativas e os atos decisórios dos agentes estatais sejam fonte de injustiças e de perplexidades atentatórias ao paradigma de coerência exigido nas deliberações do Estado e de seus delegados, aprumando-os ao padrão aceitável de moralidade, de eficiência e racionalidade” (CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, “O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil”, Ed. Forense, 1989, p. 159). Desta forma, não parecem existir razões de ordem jurídica que levem à obrigação que acabou sendo criada (sem previsão legal, é bom que se esclareça) pelos agentes da Receita Federal, no sentido de vincular a consulente, por seus representantes, a pesquisar a idoneidade da firma importadora antes de com ela fechar qualquer negócio. Situação tão estranha como esta não pode mesmo prevalecer ! A emprestar validade à autuação, ora impugnada, o Estado, por intermédio de seu aparelho repressor, estaria delegando, de modo absolutamente inválido, a tarefa do exercício do PODER DE POLÍCIA a quem não tem legitimidade para exercê-lo ! O princípio da RAZOABILIDADE, como se vê, serve de abrigo à pretensão da consulente, até porque, ainda segundo a bem urdida lição de CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, referida previsão jurídica visa justamente impedir “o abuso do poder normativo governamental, isto em todas as suas exteriorizações, de maneira a repelir os males da ‘irrazoabilidade’ e da ‘irracionalidade’, ou seja, do destempero das instituições governativas, de que não está livre a atividade de criação ou de concreção das regras jurídicas nas gigantescas burocracias contemporâneas” (ob. cit., p. 160). Acredita-se, sinceramente, que se está diante de norma jurídica (da espécie princípio jurídico) que veda mesmo a pretensão esposada pela Secretaria da Receita Federal (órgão da Administração Pública Direta ou Centralizada, aqui representado pela União Federal). Eis aí, pois, a liquidez e certeza do Direito que deverá ser postulado judicialmente pela consulente.