ACIDENTES DE TRÂNSITO: DOLO EVENTUAL OU CULPA CONSCIENTE?

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O direito não é mero pensamento, mas sim força viva. Por isso, a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito. Ambas se completam e o verdadeiro estado de direito só existe onde a força, com a qual a Justiça empunha a espada, usa a mesma destreza com que maneja a balança Rudolf Von Ihering, in A Luta Pelo Direito Nos tempos hodiernos, tem sido sede de grande celeuma na doutrina e, principalmente, nos tribunais a discussão no que tange à possibilidade da existência de dolo eventual ou de culpa consciente nos acidentes de trânsito, mormente ocasionados pelo excesso de velocidade e embriaguez ao volante. Saber se o agente foi impulsionado pelo dolo ou pela culpa no momento da ação praticada em desacordo com os preceitos legais requer do jurista uma exegese mais detalhada, pois, com efeito, qual seja o resultado alcançado, isto é, interpretado à luz do caso concreto, será o agente reprimido com maior ou menor intensidade por parte do Estado, através do seu Jus Puniendi, consoante e apresenta um ou outro elemento. A Constituição Federal reconhece, no art. 5º, XXXVIII, a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. “O júri é um tribunal popular, de essência e obrigatoriedade constitucional, regulamentado na forma da legislação ordinária, e, atualmente, composto por um juiz de direito, que o preside, e por 21 jurados, que serão sorteados dentre cidadãos que constem do alistamento eleitoral do Município, formando o Conselho de Sentença com sete deles”, no dizer de Alexandre de Moraes. A instituição do júri, em março do ano de 2000, levou S.C.S a julgamento, no auditório do 3º Tribunal do Júri da Comarca de Maceió, Alagoas. O réu foi denunciado como incurso nas penas do art. 121 do Código Penal Brasileiro (homicídio doloso), por ter atropelado com seu carro, na noite do reveillon de 1998, o menor B.M.C. que se encontrava passeando em sua bicicleta, tese esta defendida pelo Dr. Promotor de Justiça titular daquele tribunal do júri. O Ministério Público, ofereceu denúncia e apresentou tese inédita no Estado de Alagoas, no sentido de que o agente ao: a) Dirigir sem ter habilitação; b) Dirigir um carro sem condições; c) Dirigir em alta velocidade; d) Dirigir embriagado; e) Não tentar evitar o choque; f) Não tentar evitar a morte iminente, assumiu o risco de produzir o resultado, qual seja, a morte, caracterizando, desse modo, o dolo eventual. Todavia, para melhor analisar se em face dos acidentes (crimes) de trânsito há a existência de dolo eventual ou de culpa consciente, imperioso se faz analisar os conceitos de dolo e culpa e a diferenciação do dolo eventual da culpa consciente, o que passamos a fazê-lo. Como bem preleciona o professor argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, “o dolo é o elemento nuclear do tipo subjetivo e, freqüentemente, o único componente do tipo subjetivo, nos casos em que o tipo não requer outros”. Desse modo, via de regra, os crimes são sempre dolosos. Eventualmente o tipo penal pode acolher a modalidade culposa na conduta do agente ativo, entretanto, isto só é possível se houver a previsão legal, ou seja, o dolo é a regra e a culpa, exceção prevista em lei. De maneira ampla e genérica, o dolo é a vontade de concretizar os elementos do fato típico. Constitui elemento subjetivo do tipo. A doutrina distingue duas formas de dolo: o dolo direto e o dolo indireto. O primeiro ocorre quando o sujeito visa certo e determinado resultado, como, verbi gratia, desferir tiros na vítima com a intenção de matá-la. Na Segunda forma de dolo, a vontade do sujeito não se dirige a certo e determinado resultado. Apresenta-se sob as formas de dolo alternativo e dolo eventual. Há, como bem lembra Damásio E. de Jesus, dolo alternativo, “quando a vontade o sujeito se dirige a um ou outro resultado, como por exemplo, do sujeito que desfere golpes de faca na vítima com intenção alternativa: ferir ou matar”. Já o dolo eventual ocorre quando o sujeito assume o risco de produzir o resultado. O agente não deseja o resultado, pois se assim ocorresse, não seria dolo eventual, e sim direto. Ele prevê que é possível causar aquele resultado, mas a vontade de agir é mais forte, ele prefere assumir o risco a desistir da ação. Não há uma aceitação do resultado em si, há a sua aceitação como probabilidade, como possibilidade. Entre desistir da conduta e poder causar o resultado, este se lhe mostra indiferente. In caso, se o agente, dirigindo embriagado, de forma perigosa, não tentando evitar o choque, pensa: “eu não quero matar ninguém, mas se eu continuar dirigindo assim posso vir a atropelar e matar alguém… mas se matar, tudo bem”, indubitavelmente estará presente o dolo eventual. Todavia, para o Código Penal vigente, o dolo eventual e equiparado ao dolo direto. O estatuto repressivo reza em seu art. 18, I que o crime é doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. O dolo direto está representado na 1ª parte do dispositivo: “quis o resultado”, e o dolo indireto na 2ª parte: “ou assumiu o risco de produzi-lo”. De acordo com a teoria finalista da ação, a culpa é elemento do tipo. Age com culpa aquele que “deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” conforme se depreende do art. 18, II do Código Penal. A doutrina divide o elemento culpa em duas formas: culpa inconsciente e culpa consciente. Por seu turno, a culpa inconsciente é constatada quando o resultado, embora previsível, não é previsto pelo agente. São os casos de negligência, imperícia e imprudência, em que não houve a previsão do resultado por descuido, desatenção ou desinteresse do agente. Há culpa consciente, também chamada culpa com previsão, quando o agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, possível, mas confia convictamente que ele não ocorra. O agente, mesmo prevendo o resultado, não o aceita, nem assume o risco de produzi-lo. Apesar de prevê-lo, confia o agente em sua não-produção. O Código Penal pátrio equipara a culpa consciente à inconsciente, designando a mesma pena abstrata para ambos os casos. Com efeito, percebemos ser bastante tênue a linha que distingue o dolo eventual da culpa consciente. Exatamente nesse ponto é que reside a grande controvérsia acerca de ser constado um ou outro elemento nos acidentes de trânsito, haja vista a enumera quantidade de posições jurisprudenciais em ambos os sentidos. Apesar disto, para a maioria dos doutrinadores, a questão é mais clara. Destarte, se faz necessário distinguir o dolo eventual da culpa consciente. A diferença básica do dolo indireto do tipo eventual da culpa consciente reside no fato da aceitação ou não do resultado objetivamente previsto. Na culpa consciente, o agente não aceita o resultado danoso, apesar de o prever; não assume o risco de produzi-lo; o resultado não é, para ele, indiferente nem tolerável. Já no dolo eventual, o agente tolera, aceita, a produção do resultado; assume o risco de produzi-lo; o resultado danoso é, para ele, indiferente. O Parquet Estadual, no seu mister, ao expor a tese inédita nos Tribunais de Alagoas da ocorrência de dolo eventual nos delitos de trânsito, em nosso entendimento, agiu acertadamente, pois, não negamos a possibilidade da existência do dolo eventual nos chamados acidentes de trânsito, que na verdade são homicídios dolosos no qual irresponsáveis, na maior parte das vezes embriagados, excluem a vida de inúmeras pessoas, evento este que encontramos em número cada vez maior em nosso país. Todavia, mister se faz constatar se ouve realmente dolo eventual na ação do sujeito ativo diante do caso concreto, por ser com fulcro na interpretação deste que o operador do direito terá sua base para diferenciar os dois elementos, caso contrário, o uso indiscriminado de um ou de outro elemento, sem a necessária exegese, poderá levar a um comprometimento sério da justiça, corolário inafastável de toda a sociedade.