Advogado que representa contra juiz não comete crime
O Supremo Tribunal Federal considerou que um advogado não comete o crime de calúnia e injúria contra um juiz quando apresenta uma representação contra ele à OAB, ainda que se utilize de expressões consideradas excessivas. A 2ª Turma do Supremo trancou, por unanimidade, uma ação penal do juiz Bruno José Berti Filho contra o advogado Edison de Antonio Alcindo. Em 2003, o ministro Gilmar Mendes já havia decidido pela suspensão da ação penal até o julgamento do mérito do Habeas Corpus pelo STF. Alcindo fez uma representação à Comissão de Prerrogativas da OAB-SP em que reclamava da decisão juiz que concedia os alvarás em levantamentos de ações previdenciárias em nome das partes e não dos advogados. Na representação, o advogado acusava Berti de abuso de autoridade e dizia que o juiz agia acima da lei e com má-fé para prejudicá-lo. Os ministros acompanharam o voto do relator, que considerou que a principal intenção do advogado na representação era a defesa de suas prerrogativas. Para Gilmar Mendes, apesar das “expressões que podem ser consideradas excessivas”, a intenção do advogado não era a de ofender o juiz. A denúncia contra o advogado havia sido recebida pelo juiz da 3ª Vara de Fernandópolis (SP) e os Habeas Corpus ao extinto Tribunal de Alçada Criminal e ao Superior Tribunal de Justiça foram negados. O advogado Rodrigo Nascimento Dall’Acqua defendeu Alcindo em nome da OAB-SP. Leia a Integra do Habeas Corpus ao STF EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR MINISTRO PRESIDENTE DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECÇÃO DE SÃO PAULO, por seu procurador, o advogado Rodrigo Nascimento Dall’Acqua, brasileiro, casado, inscrito em seu quadro sob o número 174.378, com escritório na Av. São Luís, 50, 11º andar, cj. 112B, São Paulo (SP), vem, respeitosamente, a presença de Vossa Excelência, com fundamento no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal e artigo 647 e seguintes do Código de Processo Penal, impetrar a presente: ORDEM DE HABEAS CORPUS COM PEDIDO DE LIMINAR em favor do Advogado EDISON DE ANTÔNIO ALCINDO, brasileiro, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil secção de São Paulo sob o no. 15.811, domiciliado na Rua Três, n. 2.181, Jales (SP), apontando desde já como autoridade coatora o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, (habeas corpus nº 24.360), que está causando constrangimento ilegal ao Paciente, conforme as razões de fato e de direito expostas a seguir. O Paciente é Advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil desde o ano de 1.965, formado na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, atuando predominantemente na Comarca de Jales, interior de São Paulo. Nestes quase quarenta anos de advocacia, fez-se respeitado e admirado por sua irrepreensível conduta profissional, sem jamais ter contra si qualquer reclamação ou fato desabonador decorrente, ou não, do exercício da advocacia. Na data de 19 de julho de 2.000, o Paciente encaminhou envelope fechado contendo uma petição ao Presidente da Sub-Secção da OAB de Jales, narrando fatos que em sua firme convicção configuravam desrespeito ao Estatuto da Advocacia, reclamando a intervenção da Entidade. Reportando-se diretamente ao Presidente da Sub-Secção de Jales, o Paciente utilizou-se de linguagem informal e direta (falava com seus pares) para narrar os fatos e apresentar documentos(doc. 1). Em suma, relatou que o MM. Magistrado da 1ª Vara Cível da Comarca de Fernandópolis (SP) determinava a expedição de alvará de levantamento em ações previdenciárias em nome do cliente, e não do Advogado, como usual. Sem querer discutir a conveniência da determinação acima, vale salientar que a expedição de alvará levantamento em ações previdenciárias em nome da parte vem suscitado protestos, não só do Paciente, mas também da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP: “CIENTIFICAÇÃO VIA SEED – Depósito efetivado a favor do autor em ação previdenciária – A AASP oficiou aos MM. Juizes da 3ª e 5ª Varas Cíveis da Comarca de São Caetano do Sul requerendo modificação da atual orientação que determina seja cientificado o autor, via SEED, de depósito efetivado a seu favor em ação previdenciária, fazendo cessar a ofensa à classe, uma vez que tal medida coloca em dúvida a lisura do advogado no acerto de contas com seu constituinte, caracterizando odioso preconceito contra toda uma classe profissional.” (Boletim da AASP Nº 2.168, de 17 à 23.07.2000) Faz-se essa observação tão somente para demonstrar que o Paciente, ao solicitar providências da Ordem dos Advogados do Brasil, agiu movido pelo mesmo interesse que motivou a Diretoria da Associação dos Advogados de São Paulo a manifestar-se sobre o tema: a defesa de direitos profissionais que se supõe legítimos. Voltando a petição formulada pelo Paciente, este, após narrar o ocorrido, solicitou a intervenção da OAB/SP para que tomasse as medidas pertinentes afim de fazer cessar a situação reportada. Neste intróito, Excelências, é imperioso destacar que todos os procedimentos instaurados pela Comissão de Direitos e Prerrogativas do Advogado são, necessariamente SIGILOSOS. A única e restrita publicidade dada aos procedimentos internos ocorre para a própria parte representada, para que possa ter ciência dos fatos, e, querendo, oferecer sua versão. O sigilo garantido aos procedimentos instaurados pela Comissão de Prerrogativas é notório, e encontra-se previsto no artigo 76 do Regimento Interno da OAB/SP: “Art. 76 – O processo deverá tramitar com celeridade necessária aos objetivos a que se propõe. Do procedimento somente terão vista os interessados, vedada a extração de cópia para uso externo.” (grifamos) Mantendo o sigilo exigido, os autos foram enviados para o Presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, que remeteu, em envelope lacrado, uma cópia da petição subscrita pelo Paciente para que o ilustre Magistrado apresentasse sua versão sobre os fatos (doc. 1). Sentindo-se ofendido com os termos da representação do Paciente, o ilustre Magistrado representou criminalmente contra o mesmo(doc. 3), culminando na denúncia oferecida pelo delito definido nos artigos 138 e 140 caput, (calúnia e injúria), com a causa de aumento definida no artigo 141, inciso II do Código Penal Brasileiro(doc. 4). Recebida a denúncia em 19 de março de 2.002 (doc. 5), foi instaurada ação penal contra o Paciente, causando-lhe inadmissível constrangimento ilegal, face a manifesta ausência de dolo ofensivo, inexistindo a necessária justa causa para persecução penal. Impetrou-se habeas corpus perante o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, sendo concedida a medida liminar pleiteada para impedir o interrogatório do Paciente: “Encontram-se presentes nos autos os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora. A advocacia é função essencial à administração da justiça, por comando fundante, enfatizado a partir da Carta de 1988.” No julgamento do writ, contudo, a Colenda 7ª (Sétima) Câmara do Egrégio Tribunal de Alçada Criminal denegou a ordem, pecando ao envolver-se calorosamente com questões indiferentes à causa[1], e afastando-se da estreita análise jurídica pretendida. Analisando as mesmas questões, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça denegou a ordem impetrada (doc. 06) A FALTA DE JUSTA CAUSA PELA MANIFESTA AUSÊNCIA DE DOLO OFENSIVO Não se pretende aqui discutir o mérito dos fatos discutidos na presente ação penal, mas sim, dentro do permitido pela estreita via do habeas corpus, demonstrar a gritante ausência de justa causa, através de um exame superficial e distante de debates valorativos sobre a prova. Sem nenhuma necessidade de adentrar no mérito da questão, respeitando os limites do remédio heróico, já é escandalosamente visível que a única intenção do Paciente era defender sues interesses e de sua classe profissional. No momento da elaboração e da remessa da referida petição perante a OAB, o Paciente manifestamente estava empenhado em relatar as atitudes adotadas pelo Juiz de Primeira Instância, com o propósito de solicitar a tomada de providências. O Mestre NELSON HUNGRIA definiu “o dolo específico dos crimes contra a honra como sendo a consciência e vontade de ofender a honra alheia (reputação, dignidade ou decôro), mediante a linguagem falada, mímica ou escrita.[2]” Segundo a lição de Hungria, encampada por toda doutrina, o dolo ofensivo característico dos crimes contra a honra é excluído quando na presença de certos animus, entre eles o animi defendendi e o animi narrandi. Define o Desembargador ADALBERTO JOSÉ Q. T. CAMARGO ARANHA os termos do animus defendendi: “O animus defendendi revela a intenção do agente de defender um interesse tutelado.”[3] Novamente valendo-se dos ensinamentos do Mestre HUNGRIA, segue a definição do animus narrandi: “É a intenção de referir a outrem aquilo que viu, sentiu ou ouviu a respeito de alguém.”[4] Indiscutivelmente, de superficial análise, o Paciente peticionou à OAB/SP com o intuito de defender seus direitos profissionais, e, para isso, ainda foi necessário elaborar uma contundente narrativa dos fatos que envolveram esta questão. Tudo isso em procedimento sigiloso, que apenas os integrantes da Comissão de Prerrogativas e o próprio Magistrado envolvido possuem acesso. Vale dizer que o Magistrado representado só teve vista da petição feita pelo Paciente porque assim foi determinado pelo membro da Comissão de Prerrogativas, que enviou-lhe cópia para que oferece-se sua versão dos fatos. Caso a intenção do Paciente fosse atentar contra a honra do Magistrado de Primeira Instância, utilizaria, decerto, meio diverso do processo sigiloso. Propagaria inverdades pelos corredores do Fórum, afixaria escritos caluniosos apócrifos, enviaria missivas injuriosas a seus colegas de profissão, enfim, buscaria efetivamente atacar a reputação alheia. Na presença dos animus defendendi e narrandi, não há que se falar na configuração de crime contra a honra, como proclama em uníssono a jurisprudência pátria, como bem exemplifica o julgado a seguir, emanado pelo Egrégio TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL DO ESTADO DE SÃO PAULO: “CRIME CONTRA A HONRA – Advogado que, em representação contra Promotor de Justiça, imputa-lhe a prática de crimes, relatando fatos e incidentes vinculados à discussão da causa, que reputou irregulares e prejudiciais aos interesses de seu cliente – Configuração – Inocorrência: – Impossível falar-se em crime contra honra, por ausência do elemento subjetivo do injusto, na hipótese em que o agente, na condição de Advogado, representa contra Promotor de Justiça, imputando-lhe a prática de crimes, se o escrito incriminado não passa de mero relato, entremeado de considerações sobre fatos e incidentes processuais que reputou irregulares e prejudiciais aos interesses de seu cliente, posto que sua conduta, vinculada à discussão da causa é inspirada pelo animus defendendi, não desborde do âmbito da simples notitia criminis, com pedido de providência à Autoridade competente, encontrando-se amparada na excludente do exercício regular de direito no art. 23, III, do CP e na imunidade judiciária contida no art. 133 da Constituição Federal.” Destaca-se no corpo do referido acórdão: “ Por igual, disse o Excelso Supremo Tribunal Federal, num caso em que envolvia um Magistrado: “Tendo o agente representado à autoridade judiciária competente, narrando arbitrariedades e requerendo sua apuração, não há falar em crime de calúnia, mas no exercício do direito individual de pedir, em sede própria, a apuração de fatos possivelmente delituosos” (STF, RHC nº 66.018-5/SP, Rel. Min. Francisco Rezek, JUTACrim 95/458).