Advogado tem direito de fiscalizar trabalhos de CPI

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Qualquer pessoa que sofra investigação penal, policial ou parlamentar e seja convocada a depor tem, entre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio, de não produzir prova contra si e de ser representado por um advogado. O entendimento, já pacificado no Supremo Tribunal Federal, foi reafirmado pelo ministro Celso de Mello para garantir que sejam respeitados as garantias fundamentais de Carlos Ubiratan dos Santos no depoimento que ele presta nesta segunda-feira (17/3) à CPI do Detran/RS, instaurada pela Assembléia Legislativa gaúcha.
“Ninguém pode ser constrangido a confessar prática de ilícito penal”, afirmou Celso de Mello. O ministro foi ainda mais longe. Ao garantir que Ubiratan seja acompanhado por seu advogado durante o depoimento, afirmou que faz parte da atividade profissional da advocacia “o exercício do poder de fiscalizar eventuais abusos cometidos por CPI”. Segundo o ministro, o advogado “não pode ser cerceado na prática legítima de atos que visem neutralizar situações configuradas de arbítrio estatal ou de desrespeito aos direitos daquele que lhe outorgou pertinente mandato”.
A CPI do Detran/RS foi criada para investigar fraudes no sistema de obtenção e renovação de carteiras de motoristas. O suposto esquema de fraudes foi descoberto depois da Operação Rodin da Polícia Federal, deflagrada em 6 de novembro de 2007. Ubiratan já foi presidente do Detran gaúcho. Ele foi convocado a prestar depoimento e entrou com pedido de Habeas Corpus preventivo para ser assistido por seu advogado e exercer o direito de não se auto-incriminar. Também queria ficar livre de prestar o depoimento, mas esta parte do pedido foi negada pelo ministro Celso de Mello.
Quanto ao direito ao silêncio, o ministro afirmou que o Supremo Tribunal Federal, “fiel aos postulados constitucionais, enfatizou que qualquer indivíduo submetido a procedimentos investigatórios ou a processos judiciais de natureza penal tem dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. O direito ao silêncio — e de não produzir provas contra si próprio — constituiu prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República”.
Para Celso de Mello, ignorar a regra constitucional do direito ao silêncio é revelar a “face arbitrária do Estado”. “Os princípios democráticos que informam o modelo constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer comportamento estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção, nem por responsabilidade criminal por mera suspeita”, considerou.
O ministro confirmou também o direito de o convocado a depor na CPI ser assistido por advogado. “Ao advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, a prerrogativa contra a auto-incriminação e o direito de não ser tratado, pelas autoridades públicas, como se culpado fosse, observando-se, desse modo, as diretrizes, previamente referidas, consagradas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.”
“Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não dêem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal”, afirmou Celso de Mello.

Separação de poderes – Celso de Mello ainda aproveitou o voto para lembrar os parlamentares que o poder não se exerce de forma ilimitada. “No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.” O ministro afirmou que se a Constituição atribuiu às CPIs os mesmos poderes das autoridades judiciais, então os parlamentares estão igualmente sujeitos às mesmas restrições e limitações impostas pela lei.
“A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei”, ressaltou Celso de Mello.

Leia o voto

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 94.082-0 RIO GRANDE DO SUL
RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
PACIENTE(S): CARLOS UBIRATAN DOS SANTOS
IMPETRANTE(S): MARCELO MACHADO BERTOLUCI E OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO HABEAS CORPUS Nº 102328 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CPI) INSTAURADA PELA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. “CPI DO DETRAN/RS”. PRIVILÉGIO CONSTITUCIONAL CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO: GARANTIA BÁSICA QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS. A PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO (PARLAMENTAR, POLICIAL OU JUDICIAL) NÃO SE DESPOJA DOS DIREITOS E GARANTIAS ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO E PELAS LEIS DA REPÚBLICA. DIREITO À ASSISTÊNCIA EFETIVA E PERMANENTE POR ADVOGADO: UMA PROJEÇÃO CONCRETIZADORA DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”. A PRIMAZIA DA “RULE OF LAW”. A PARTICIPAÇÃO DOS ADVOGADOS PERANTE AS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO E O NECESSÁRIO RESPEITO ÀS PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS DESSES OPERADORES DO DIREITO (MS 25.617/DF, REL. MIN. CELSO DE MELLO, DJU 03/11/2005, V.G.). O POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E A LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE, PELO JUDICIÁRIO, DAS FUNÇÕES INVESTIGATÓRIAS DAS CPIs, SE E QUANDO EXERCIDAS DE MODO ABUSIVO. DOUTRINA. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus” preventivo, com pedido de medida cautelar, impetrado contra decisão emanada de eminente Ministra de Tribunal Superior da União, que, em sede de outra ação de “habeas corpus” ajuizada perante o Superior Tribunal de Justiça (HC 102.328/RS), extinguiu, liminarmente, o próprio processo de “habeas corpus” (fls. 25/27).
Presente tal contexto, impende verificar, desde logo, se a situação processual versada nestes autos justifica, ou não, o afastamento, sempre excepcional, da Súmula 691/STF.
Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, v.g.).
Parece-me que a situação exposta nesta impetração ajusta-se às hipóteses que autorizam a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF.
O presente “habeas corpus” preventivo objetiva preservar o “status libertatis” do ora paciente, convocado a depor na “CPI do DETRAN/RS” em sessão a ser realizada no próximo dia 17 de março.
Busca-se, com a presente ação de “habeas corpus”, a obtenção de provimento jurisdicional que assegure, cautelarmente, ao ora paciente, (a) o direito de ser assistido por seu Advogado e de com este comunicar-se durante o curso de seu depoimento perante a referida Comissão Parlamentar de Inquérito e (b) o direito de exercer o privilégio constitucional contra a auto-incriminação, sem que se possa adotar, contra o ora paciente, como conseqüência do regular exercício dessa especial prerrogativa jurídica, qualquer medida restritiva de direitos ou privativa de liberdade, não podendo, ainda, esse mesmo paciente, ser obrigado “a prestar e assinar termo de compromisso como testemunha” (fls. 23).
Passo a apreciar o pedido de medida liminar formulado nesta sede processual.
E, ao fazê-lo, defiro a postulação em causa, nos termos referidos no parágrafo anterior (“a” e “b”), notadamente para o fim de assegurar, ao ora paciente, além do direito de ser assistido e de comunicar-se com o seu advogado, também o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si próprio, se e quando inquirido sobre fatos cujo esclarecimento possa importar em sua auto-incriminação, sem dispensá-lo, contudo, da obrigação de comparecer perante a Comissão Parlamentar de Inquérito do DETRAN/RS.
CPI E O PRIVILÉGIO CONSTITUCIONAL CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO.
Tenho enfatizado, em decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, a propósito da prerrogativa constitucional contra a auto-incriminação (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO), e com apoio na jurisprudência prevalecente no âmbito desta Corte, que assiste, a qualquer pessoa, regularmente convocada para depor perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de se manter em silêncio, sem se expor – em virtude do exercício legítimo dessa faculdade – a qualquer restrição em sua esfera jurídica, desde que as suas respostas, às indagações que lhe venham a ser feitas, possam acarretar-lhe grave dano (“Nemo tenetur se detegere”).
É que indiciados ou testemunhas dispõem, em nosso ordenamento jurídico, da prerrogativa contra a auto-incriminação, consoante tem proclamado a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RTJ 172/929-930, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 78.814/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Cabe acentuar que o privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito (OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, “CPI ao Pé da Letra”, p. 64/68, itens ns. 58/59, 2001, Millennium; UADI LAMMÊGO BULOS, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, p. 290/294, item n. 1, 2001, Saraiva; NELSON DE SOUZA SAMPAIO, “Do Inquérito Parlamentar”, p. 47/48 e 58/59, 1964, Fundação Getúlio Vargas; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, p. 65 e 73, 1999, Ícone Editora; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 3, p. 126-127, 1992, Saraiva, v.g.) – traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, assegurado a qualquer pessoa pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política.
Convém assinalar, neste ponto, que, “Embora aludindo ao preso, a interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda e qualquer pessoa, pois, diante da presunção de inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão (…), a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação” (ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal”, p. 113, item n. 7, 1997, RT – grifei).
É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu esse direito também em favor de quem presta depoimento na condição de testemunha, advertindo, então, que “Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la” (RTJ 163/626, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei).
Com o explícito reconhecimento dessa prerrogativa, constitucionalizou-se, em nosso sistema jurídico, uma das mais expressivas conseqüências derivadas da cláusula do “due process of law”.
Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado – ainda que convocada como testemunha (RTJ 163/626 –RTJ 176/805-806) -, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si própria, consoante reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Esse direito, na realidade, é plenamente oponível ao Estado, a qualquer de seus Poderes e aos seus respectivos agentes e órgãos. Atua, nesse sentido, como poderoso fator de limitação das próprias atividades de investigação e de persecução desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes, Tribunais e Comissões Parlamentares de Inquérito, p. ex.).
Cabe registrar que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio, ao explicitar, agora em sede constitucional, o postulado segundo o qual “Nemo tenetur se detegere”, nada mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda que compõe o “Bill of Rights” norte-americano.
Na realidade, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal (HC 80.530-MC/PA, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Trata-se de prerrogativa, que, no autorizado magistério de ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Direito à Prova no Processo Penal”, p. 111, item n. 7, 1997, RT), “constitui uma decorrência natural do próprio modelo processual paritário, no qual seria inconcebível que uma das partes pudesse compelir o adversário a apresentar provas decisivas em seu próprio prejuízo (…)”.
O direito de o indiciado/acusado (ou testemunha) permanecer em silêncio – consoante proclamou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em Escobedo v. Illinois (1964) e, de maneira mais incisiva, em Miranda v. Arizona (1966) – insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal.
A importância de tal entendimento firmado em Miranda v. Arizona (1966) assumiu tamanha significação na prática das liberdades constitucionais nos Estados Unidos da América, que a Suprema Corte desse país, em julgamento mais recente (2000), voltou a reafirmar essa “landmark decision”, assinalando que as diretrizes nela fixadas (“Miranda warnings”) – dentre as quais se encontra a prévia cientificação de que ninguém é obrigado a confessar ou a responder a qualquer interrogatório – exprimem interpretação do próprio “corpus” constitucional, como advertiu o então “Chief Justice” William H. Rehnquist, autor de tal decisão, proferida, por 07 (sete) votos a 02 (dois), no caso Dickerson v. United States (530 U.S. 428, 2000), daí resultando, como necessária conseqüência, a intangibilidade desse precedente, insuscetível de ser derrogado por legislação meramente ordinária emanada do Congresso americano (“… Congress may not legislatively supersede our decisions interpreting and applying the Constitution …”).
Cumpre rememorar, bem por isso, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 68.742/DF, Rel. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO (DJU de 02/04/93), também reconheceu que o réu não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu “status poenalis”.

Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2008

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