Artigo: “A COVID-19 e seus reflexos nas relações jurídico-contratuais” (*) Régis Santiago de Carvalho

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A pandemia de COVID-19, como se sabe, é decorrente de uma doença respiratória aguda grave causada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Sua capacidade de disseminação é espantosa (uma única pessoa contaminada pode infectar outras 20), o que levou os Governos Federal e Estadual a decretarem estado de calamidade pública e o Municipal situação de emergência, impondo severas restrições quanto ao funcionamento de bares, restaurantes e lanchonetes, além do fechamento de academias, centros de ginástica e estabelecimentos similares; shopping centers e congêneres; dentre outras recomendações visando evitar a aglomeração de pessoas.

Como sói acontecer, os impactos na economia serão dantescos, com reflexos negativos sem precedentes na geração de emprego e renda e, em última análise, nas relações jurídicas, especialmente as contratuais.

Diante desse cenário, é fundamental que empresários, inclusive rurais; comerciantes, profissionais liberais e todos aqueles mais suscetíveis aos reflexos causados pela pandemia do novo coronavírus no Brasil estejam preparados não só sob o ponto de vista da gestão de gastos e administração de caixa, no caso das empresas, como também em relação aos efeitos jurídicos de eventual inadimplemento contratual de suas obrigações.

Como se sabe, o inadimplemento contratual carrega consigo diversas consequências jurídicas que vão desde a cobrança de juros moratórios, multas etc à rescisão do contrato.

Mas como minimizar (legalmente) os efeitos dessa crise?

Uma primeira “saída” seria a renegociação privada e consensual das obrigações mediante ajustes com o credor da obrigação e, até, a realização de uma novação de dívida, que resume, basicamente, em contrair nova dívida com o credor para extinguir e substituir a anterior.

Nesse aspecto, o próprio Conselho Monetário Nacional (CMN) adotou, em caráter extraordinário, iniciativas para facilitar a renegociação de operações de crédito e ampliar a folga de capital dos bancos, de forma que eles possam conceder mais empréstimos e a Federação Brasileira de Bancos emitiu nota oficial reconhecendo o impacto da pandemia do coronavírus no emprego e na renda e se comprometeu, juntamente com seus associados, a atender pedidos de prorrogação, por 60 (sessenta) dias, dos vencimentos de dívidas de clientes pessoas físicas e micro e pequenas empresas para os contratos vigentes em dia e limitados aos valores já utilizados.

Da mesma forma, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) anunciou, com base na Medida Provisória nº 899, de 2019, a suspensão de atos de cobrança contra contribuintes e informou que facilitará a renegociação das dívidas, permitindo o pagamento de entrada no valor de 1% da dívida e diferimento de pagamentos das demais parcelas por 90 (noventa) dias; enquanto o Governo Federal prorrogou os prazos para recolhimento do Simples Nacional para outubro, novembro e dezembro de 2020, além de outras medidas de mitigação.

Outra medida mais drástica, porém igualmente eficaz, consiste em utilizar-se dos regimes de recuperação judicial para viabilizar a reestruturação das dívidas. Grosso modo, a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Existe ainda a possibilidade de se revisar contratos financeiros em geral com o intuito de alterar os termos e condições originalmente pactuados entre financiador e tomador, em razão do efeito adverso relevante. Trata-se do instituto jurídico da “lesão”, muito utilizado no início do ano de 1999 com o advento da crise cambial (onde houve uma maxidesvalorização da moeda nacional frente ao dólar norte-americano em, aproximadamente, 70%), notadamente naquelas relações negociais em que a variação cambial da moeda americana foi adotada como índice de correção monetária.

Atualmente, vários são os dispositivos que asseguram a manutenção ou o restabelecimento do equilíbrio contratual, especialmente no âmbito das relações de consumo, aí incluídas as de natureza bancária, financeira e de crédito (art. 3º, §2º c/c artigos 6º, V e 51, IV do Código de Defesa do Consumidor). Diferentemente do Código Civil de 1916, que não incluiu o instituto da lesão entre as hipóteses de defeito do negócio jurídico; o atual, de 2002, prevê expressamente em seu artigo 171, inciso II, a anulabilidade do negócio jurídico por vício resultante de “lesão”.

Nesse sentido, aliás, o inciso V do artigo 6º do Estatuto do Consumidor (Lei nº 8.078/90) é ainda mais taxativo ao estabelecer que: “São direitos básicos do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas“.

Referido dispositivo reconheceu, de forma expressa, a adoção da “teoria da imprevisão” no direito brasileiro. O mesmo foi repetido pelo inciso IV do artigo 51 que assevera: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

Segundo destaca o ilustre doutrinador Anísio José de Oliveira, em sua obra A Teoria da Imprevisão nos Contratos, 2ª Edição, 1991, Editora Universitária de Direito: a moderna teoria da imprevisão acordou “de seu sono milenar um velho instituto que a desenvoltura individualista havia relegado ao abandono, elaborando então a tese da resolução do contrato em razão da onerosidade excessiva da prestação”.

Com efeito, a partir desse instituto, serão inválidas as disposições que ponham em desequilíbrio a equivalência entre as partes. Melhor dizendo, se o contrato situa o consumidor em situação de inferioridade, com nítidas desvantagens, tal contrato poderá ter a sua validade judicialmente questionada ou, sendo possível, ter a exigibilidade da cláusula que fere o equilíbrio contratual judicialmente afastada ou revisada.

Alguém pode perguntar: Mas essa possibilidade de alteração do negócio jurídico em benefício do consumidor não fere o princípio constitucional da igualdade e da isonomia (artigo 5º, caput, da CF/88)? A resposta é negativa. Deveras, o princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual: “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (Nery Junior, Nelson, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996, p. 42).

Não bastasse isso, o Código de Defesa do Consumidor estabelece como princípio informador da Política Nacional das Relações de Consumo, o “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (artigo 4º, I, do CDC).

Portanto, sempre que fatos supervenientes tornem excessivamente onerosas condições contratuais pré-ajustadas, gerando desequilíbrio contratual nas condições gerais do negócio, torna-se possível a revisão judicial do contrato para o restabelecimento da comutatividade ou relação de equivalência que deve estar presente em todas as relações negociais; possibilidade esta que se afigura ainda mais patente nos chamados contratos de adesão ou por adesão, onde o consumidor adere a uma situação contratual já definida em todos os seus termos, inexistindo liberdade de convenção.

Esperamos, verdadeiramente, com fé no Grande Arquiteto do Universo, que essa pandemia e a crise econômica por ela deflagrada passem rapidamente; porém, de forma a contribuir com o leitor procuramos, nesse breve texto, apresentar algumas sugestões de possíveis medidas mitigadoras que poderão ser adotadas de maneira legal e complementar às práticas de gestão já conhecidas por aqueles que exercem atividades empresariais e comerciais, bem como dos profissionais liberais, mais vulneráveis as situações de desequilíbrio econômico.

 

(*) É Advogado e Conselheiro da OAB/MS.