Artigo: Da Verdade Afetiva, seus Efeitos e a Proteção da Criança e da Família

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(*) Por Ildália Aguiar

A verdade afetiva tem sido buscada e reconhecida por nossos tribunais superiores por corroborar com a proteção à família e à criança. O Brasil tem instituído aos poucos uma normatização e regulamentação para a família brasileira e tais diretrizes se baseiam na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu art. 226, no ECA, que reconhece o princípio da Dignidade da Pessoa  Humana em toda a sua extensão, validando a cada dia  as normas acima mencionadas.

O provimento 149/2017, da corregedoria do TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) – publicado no Diário do TJ desta quarta-feira (18) -, reconhece e regulamenta a chamada paternidade socioafetiva, quando não existir vínculo biológico registrado, e a pessoa estabelecer laços afetivos de paternidade com a criança.

O que significa dizer que a criança que não possuir pai biológico em seu registro de nascimento, e obtiver concomitantemente e/ou posteriormente a paternidade afetiva, poderá ter a paternidade afetiva reconhecida pela via extrajudicial.

Ocorre que antes da regulamentação, toda e qualquer criança que não possuísse registro paterno, e seu pai afetivo quisesse reconhecê-la, teria de ingressar com pedido na Vara de Família da Comarca de Campo Grande – MS para, após, passar por um juízo de admissibilidade, ter sua paternidade afetiva reconhecida e registrada na certidão de nascimento por ordem judicial.  

Com o provimento a realidade é outra: necessário se faz que o pai afetivo da criança, em concordância com a mãe, baseados no melhor interesse da criança, dirijam-se ao cartório de registros com seus documentos pessoais (de identificação com foto, certidão de nascimento do filho, em original ou cópia) para que proceda o reconhecimento afetivo da filiação.

Trata-se de medida que vem ocorrendo em alguns estados do País e o MS decidiu ser também pioneiro nesse ato de justiça.

O dever do Estado é a proteção da criança, a proteção da instituição familiar, que vem sofrendo várias alterações nas suas estruturas, mas que no todo, representa a base da sociedade. Proteger uma criança é assegurar a esta, independente da ruptura do vínculo conjugal, a proteção do vínculo afetivo e familiar, do dever de cuidado e afeto que deriva da paternidade e que não pode ser esquecido.

Parabenizo ao CGJ do TJMS pela medida, que ainda não teve ampla divulgação, mas que aos poucos fará parte do cotidiano da sociedade campo-grandense.

O Registro da paternidade socioafetiva gera as mesmas obrigações da paternidade biológica, igualando os direitos oriundos de tal paternidade. Esse entendimento foi reiterado, em setembro de 2016, com o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 898060 com repercussão geral reconhecida, em que um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo:

O relator do RE 898060, ministro Luiz Fux, considerou que o princípio da paternidade responsável impõe que, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto àqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento simultâneo de ambas as formas de paternidade – socioafetiva ou biológica – desde que este seja o interesse do filho. Para o ministro, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos da concepção tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos.

“Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento de aplicação dos esquadros determinados pelos legisladores. É o direito que deve servir à pessoa, não o contrário”, salientou o ministro em seu voto.

O relator destacou que, no Código Civil de 1916, o conceito de família era centrado no instituto do casamento com a "distinção odiosa” entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos, com a filiação sendo baseada na rígida presunção de paternidade do marido. Segundo ele, o paradigma não era o afeto entre familiares ou a origem biológica, mas apenas a centralidade do casamento. Porém, com a evolução no campo das relações de familiares, e a aceitação de novas formas de união, o eixo central da disciplina da filiação se deslocou do Código Civil para a Constituição Federal.

“A partir da Carta de 1988, exige-se uma inversão de finalidades no campo civilístico: o regramento legal passa a ter de se adequar às peculiaridades e demandas dos variados relacionamentos interpessoais, em vez de impor uma moldura estática baseada no casamento entre homem e mulher”, argumenta o relator.

No caso concreto, o relator negou provimento ao recurso e propôs a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, salvo nos casos de aferição judicial do abandono afetivo voluntário e inescusável dos filhos em relação aos pais”.

Ao registrar a paternidade socioafetiva, o pai tem as mesmas obrigações de um pai biológico não existe distinção.

Essa obrigatoriedade de cumprir com os direitos já foi alvo de decisão em Mato Grosso do Sul. Isso porque um pai adotivo, ao separar-se da esposa, decidiu retirar o registro de paternidade da filha. A 5ª Câmara Cível do TJ-MS, no entanto, deu provimento ao recurso de filha, e o pai teve que cumprir com as obrigatoriedades da paternidade socioafetiva. Os cartórios precisaram se adequar às diretrizes e será gradativa a repercussão desse direito na sociedade, sendo que a partir do dia 18 de janeiro qualquer família pode providenciar o registro da paternidade afetiva.

Acesse também: http://www.midiamax.com.br/justica/paternidade-socioafetiva-direito-crianca-explica-advogada-328943

(*) Ildália Aguiar é presidente da Comissão de Direito da Família e Sucessões da OAB/MS.