As Cooperativas de Trabalho no Direito Brasileiro
Dênerson Dias Rosa O cooperativismo foi um fenômeno derivado da necessidade humana, não tendo sido precedido de nenhum estudo filosófico. O cooperativismo nasceu, portanto, da própria luta social, sendo uma doutrina de origens motivadas por situações práticas. A metodização definitiva da doutrina ocorreu especialmente graças à contribuição prática dos Pioneiros de Rochdale, que definiram precisamente o método cooperativo de repartição do produto social. A partir da fundação de sua cooperativa, sob o nome de “Rochdale Society of Equitable Pioneers”, em 28 de outubro de 1844, é que foi estabelecida a base de um programa completo contendo os princípios teóricos e as regras práticas da organização e do funcionamento das cooperativas. Os tecelões tinham normas para o funcionamento da cooperativa, e estas mais tarde se constituíram nos princípios da doutrina cooperativista. Desde então, o movimento se expandiu por toda Europa, e hoje o cooperativismo é conhecido em todo o mundo. Uma cooperativa caracteriza-se por ser uma sociedade de pessoas, não uma sociedade de capital, e seu objetivo é fortalecer aos seus cooperados para a obtenção, por parte destes, de vantagens econômicas ao trabalharem conjuntamente. Pontes de Miranda lecionava que “a cooperativa atende a necessidade ou necessidades, que podem ser satisfeitas ou mais eficientemente satisfeitas com a cooperação. Em princípio, a cooperativa supõe que outrem tire proveitos que pesam nos que se juntam, em cooperação, para que se pré – eliminem esses proveitos por terceiros (intermediários). Há algo de defensivo, de pré – eliminatório dos que teriam por fito ganhar, por falta de cooperação entre os sócios da cooperativa. O que caracteriza a cooperativa é essa função de evitamento de que outros ganhem com o que o sócio da cooperativa paga a mais, ou recebe de menos. Não se pode dizer que essa atividade seja extra – econômica, como se tem afirmado. Não é só econômico o que se passa em defesa dos que alienam e dos que adquirem. O que a cooperativa consegue eliminar é a vantagem para os sócios, quer eles paguem o que resultou da atividade cooperativa, isto é, preço abaixo do preço corrente do mercado, ou recebam acima do preço corrente do mercado; quer eles paguem o preço corrente, ou recebam pelo preço corrente, e lhes seja prestado, por divisão do ativo, o que lhes toca pelas diferenças. Nada obsta a que se entenda à maior participação capitalista do sócio”. A vantagem conquistada dentro deste panorama, é transferida aos cooperados, e não incorporada pela cooperativa, e nem poderia, pois esta, em sua essência, não visa o lucro, conforme preceitua o art. 3º da lei nº 5.764/71, abaixo transcrito, que regula o Cooperativismo brasileiro. “Art. 3° Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.” Ainda segundo Pontes de Miranda, “o fim econômico, nas sociedades cooperativas, é atingido diretamente pelos sócios, em seus contactos com a sociedade. O fim econômico, nas sociedades lucrativas, é obtido com a repartição do que a sociedade percebeu de lucro. A diferença é sutil, porém sempre da máxima relevância”. Portanto, é clara a distinção entre uma sociedade cooperada e uma sociedade de capital: na primeira os ganhos obtidos são, na realidade, incorporados pelos seus sócios, ou seja, ao patrimônio deles são agregados os ganhos obtidos pela sociedade cooperada, transcendendo a própria sociedade, pelo caráter pessoal característico deste tipo de entidade; ao contrário, na sociedade de capital, que visa a obtenção do lucro, este é incorporado ao patrimônio da própria sociedade. Em relação aos ganhos obtidos é onde se percebe de forma cristalina a distinção entre as duas personalidades. No Brasil, são muito conhecidas as Cooperativas criadas para o exercício de atividades agrícolas, comerciais, industriais ou capitalistas, todavia, a primeira modalidade de Cooperativa regulamentada no Brasil foi a Cooperativa de Trabalho, por meio do Decreto Legislativo 1.637, de 5 de janeiro de 1907 e, a partir de 1932, pelo Decreto-lei nº 22.239, de 19 de dezembro de 1932, que, em seu art. 24, abaixo transcrito, estabeleceu a sistemática de funcionamento da Cooperativa de Trabalho. “Art.24 – São cooperativas de trabalho aquelas que, constituídas entre operários de uma determinada profissão ou ofício ou de ofícios vários de uma mesma classe, têm como finalidade primordial melhorar os salários e as condições de trabalho pessoal de seus associados e, dispensado a intervenção de um patrão ou empresário, se propõem contratar obras, tarefas, trabalho ou serviços públicos ou particulares, coletivamente por todos ou por grupos de alguns.” Posteriormente, o Decreto nº 24.647, de 10 de julho de 1934, ao estabelecer as novas normas aplicáveis ao Cooperativismo no Brasil, extinguiu a figura da Cooperativa de Trabalho, prevendo a existência tão somente de Cooperativas de industriais, comerciantes e capitalistas. Todavia, como a Cooperativa é pela essência de seu próprio surgimento, uma reunião de trabalhadores, o legislador logo em seguida percebeu seu equívoco e restaurou, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura da Cooperativa de Trabalho, por meio do Decreto-lei nº 581, de 1º de agosto de 1938, norma que estabeleceu, em seu art. 17, letra a, abaixo transcrito, que as Cooperativas de Trabalho seriam, em seu funcionamento, fiscalizadas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. “Art. 17. Serão fiscalizadas pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio: a) as cooperativas de seguro; b) as cooperativas de trabalho, ou produção industrial; c) as cooperativas de construção de casas; d) as cooperativas de consumo; e) as federações dessas cooperativas.” Contudo como a normatização estatuída encontrava-se alheia à realidade do Cooperativismo no Brasil, o Presidente da República, por meio do Decreto-lei nº 8.401, de 19 de dezembro de 1945, revigorou o Decreto-lei nº 22.239, com as seguintes considerações: “Considerando que o Primeiro Congresso de Cooperativismo encareceu a necessidade da modificação da atual legislação cooperativista do país; considerando que são inúmeros e reiterados os pedidos formulados de vários pontos do pais no sentido de serem feitas com urgência tais modificações e considerando, afinal, que a consolidação da legislação cooperativista nacional se impõe o que, entretanto, demanda estudos amplos que, pela sua natureza, convém sejam apreciados pelos futuros órgãos legislativos… revoga os decretos-leis ns. 5.893, de 19 de outubro de 1943 e 6.274, de 14 de fevereiro de 1944, exceto as disposições dos arts. 104 a 118, e seus parágrafos, revigorando o decreto-lei n.º 581, de 1 de agosto de 1938 e a lei n.º 22.239, de 19 de dezembro de 1932.” Restabelecido o Decreto-lei nº 22.239/32, permaneceu este em vigor até a promulgação da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, que definiu a Política Nacional de Cooperativas que até hoje se encontra vigente no Brasil. Esta lei assegurou, em seu art. 5º, abaixo transcrito, que as Sociedades Cooperativas adotassem como objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, o que naturalmente inclui a Cooperativa de Trabalho. “Art. 5° As sociedades cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, assegurando-se-lhes o direito exclusivo e exigindo-se-lhes a obrigação do uso da expressão “cooperativa” em sua denominação.” Tal dispositivo encontra-se inclusive em perfeita harmonia com a realidade de trabalho atual, bem como com o ordenamento constitucional, haja vista que o próprio legislador constituinte de 1988, consciente de que as cooperativas guardam formas próprias de funcionamento, fez constar na Constituição Federal de 1988, em seu art. 146, III, “c”, abaixo transcrito, que as cooperativas deveriam receber adequado tratamento tributário. “Art. 146. Cabe à lei complementar: omissis III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: omissis d) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas”. Todavia, não satisfeito o legislador constituinte em assegurar tratamento tributário privilegiado às sociedades cooperativas, fez constar este, no art. 174, §2º, abaixo transcrito, da Constituição Federal de 1988, no Capítulo “DOS PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA”, que deverão ser estimulados por meio tanto o cooperativismo como outras formas associativas. “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. omissis § 2º – A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.” A relação entre a Cooperativa e seus associados, em conformidade com a Lei nº 5.764/71, art. 90, abaixo transcrito, não consiste em vínculo empregatício para qualquer fim, todavia, a fiscalização do trabalho vinha equivocadamente considerando a existência de vínculo trabalhista entre o tomador de serviço de determinada Cooperativa e os associados desta. “Art. 90. Qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados.” Para esclarecer em âmbito definitivo esta questão, e em atendimento ao preceito constitucional que determinou que a lei estimulasse o cooperativismo, o legislador ordinário promulgou a Lei nº 8.949, de 9 de dezembro de 1994, cuja ementa é “Acrescenta parágrafo ao art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para declarar a inexistência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados.” Por conseguinte o art. 442, abaixo transcrito, do Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho, inserido no Título “DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO”, expressamente declarou que, independentemente do ramo de atividade da Cooperativa, inexiste qualquer vínculo empregatício entre a própria Cooperativa e seus cooperados, bem como entre os cooperados e os tomadores de serviços da Cooperativa. “Art. 442. Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego. Parágrafo único. Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela.” Por conseguinte, apresenta-se em perfeita harmonia com o Direito Brasileiro a figura da Cooperativa de Trabalho, desde que esta atenda aos requisitos estabelecidos pela Lei nº 5.764/71, não sendo cabível à fiscalização do trabalho questionar a aplicação do Cooperativismo ao Trabalho, haja vista que a legislação vigente expressamente permite a criação deste tipo de Sociedade Cooperativa. Neste sentido, transcreve-se decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. COOPERATIVA DE TRABALHADORES. EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS. SOLIDARIEDADE. Essa forma de responsabilidade conjunta não se presume, como é sabido. Nos estritos termos do art. 896 do Cód. Civil decorre ela sempre de lei ou de acordo de vontades. Outrossim a Cooperativa e a prestadora não se beneficiaram dos serviços prestados pela reclamante – embora a segunda possa ter tido rendimento com eles. A intermediação de mão-de-obra, atípica, por parte de Cooperativa de Trabalho, que age nesse campo mas que não se beneficia dela nem a constitui como atividade lucrativa, não enseja a condenação solidária. (TRT 10ª Região. Ac. 3ª Turma. RO 2973/99. Relator Juiz Bertholdo Satyro. DJ. 07.04.00) Para melhor compreensão, transcreve-se abaixo parte do voto do Relator. “…As cooperativas, é cediço, inserem-se em sistema no qual os respectivos membros são autônomos, as tarefas são distribuídas com igualdade de oportunidades e os ganhos são proporcionais à energia que cada um dedica aos seus objetivos. É uma reunião de esforços em comum, de forma coordenada em uma sociedade igualitária, e, por definição, não visam lucro, sendo os ganhos igualmente repartidos, ao contrário das sociedades de direito comercial em geral. Com certeza foi na direção da modernização das relações de trabalho que a Lei nº8.949, de 1994, inseriu o parágrafo único ao Art. 442, da CLT, embora, como ministra RUSSOMANO, tal norma sequer haveria de ter sido legislada posto que evidente a inexistência de vínculo de emprego onde há ausência de empregado e empregador (CLT, arts. 2ª e 3ª). De fato, ali ficou estabelecido que “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviço daquela.” A introdução desse parágrafo único reconhecedor das cooperativas de trabalho ainda cria perplexidade entre os especialistas em direito do trabalho, embora o direito cooperativista não seja novo e o próprio C. TST desde há muito já pronunciou a inexistência de vínculo de emprego de associado com a entidade mesmo quando a ela preste serviços (vg TST.RR-27032/1991, 1ª Turma, Ac. 558, 16.03.1992, Rel. Min. Fernando Vilar, DJ 21.08.1992, pág. 12904). Não se olvida que a frau legis, em direito do trabalho, assume relevância maior. Mas a fraude não pode ser presumida, não bastando verossimilhança, reclamando prova contundente de quem a alega. Assim, tende a dirimência da questão assentar-se exclusivamente na prova, com a verificação da prova, com a verificação dos requisitos fáticos da atuação da cooperativa ou, ao contrário, dos pressupostos caracterizadores do contrato de trabalho…” Dentro da atual realidade, a fiscalização do trabalho deve, em primeiro momento ater-se à verificar a regularidade da constituição e funcionamento da Sociedade Cooperativa, pelo atendimento aos requisitos estabelecidos na Lei nº 5.764/71. A fiscalização do trabalho tão somente pode descaracterizar a Sociedade Cooperativa, para configurar como uma efetiva relação empregatícia a existente entre os pseudo-cooperados e a tomadora de serviço da pseudo-cooperativa, em caso de desatendimento aos requisitos legais para criação e funcionamento de uma Sociedade Cooperativa de Trabalho. Dênerson Dias Rosa, ex-Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda de Goiás é consultor tributário da Tibúrcio, Peña & Associados S/C. BIBLIOGRAFIA: Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Volume I.