DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 10.259/01
Carlos Eduardo de Castro Paciello 4º Promotor de Justiça de Pindamonhangaba/SP Leonardo Rezek Pereira 3º Promotor de Justiça de Pindamonhangaba/SP Com o advento da Lei 10.259/01, que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, não tardaram a surgir opiniões no sentido de que o artigo 61 da Lei nº 9.099/95 estivesse revogado (neste sentido, Vitor Eduardo Rios Gonçalves, Fernando Capez, Damásio E. de Jesus, Júlio Fabbrini Mirabete, entre outros). Segundo este entendimento, em resumo, a expressão “para os efeitos desta lei”, inserta no texto do parágrafo único do artigo 2º, da Lei nº 10.259/01, que restringe a aplicação do novo conceito de crimes de menor potencial ofensivo à Justiça Federal é inconstitucional por ferir o princípio da isonomia. Assim, reconhecendo-se a inconstitucionalidade desta expressão, a nova lei teria revogado o artigo 61 da Lei nº 9.099/95. De fato, o tratamento díspar dado pelo artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 10.259/01 fere o princípio constitucional da isonomia, consagrado pelo caput,do artigo 5º, da Carta Magna, pois apesar das peculiaridades inerentes à Justiça Federal, estas são insuficientes para justificar tal situação. Todavia, a solução que vêm se adotando para corrigir esta distorção, com a devida vênia, não é a mais correta, pois contraria as regras traçadas pela própria Constituição Federal para o controle da constitucionalidade das leis, senão vejamos: Com efeito, o parágrafo único do artigo 2º da lei em testilha restringiu a aplicação do conceito trazido por ele aos juizados especiais no âmbito da Justiça Federal ao dispor que: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos ou multa”. Assim, verifica-se que, em uma interpretação teleológica, a vontade do legislador não é a ampliação do conceito dos crimes de menor potencial ofensivo no âmbito da Justiça Estadual, muito menos a revogação do artigo 61, da Lei nº 9.099/95, mas sim sua aplicação restrita aos crimes de competência da Justiça Federal. Tal entendimento se reforça com o disposto no artigo 20 da aludida lei que, apesar de se referir à parte cível, ao final, é expresso ao consignar que é “vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual.” Conclui-se, assim, que a aplicação restrita do conceito de crimes de potencial ofensivo nela contido é decorrente da própria norma, em face da inequívoca intenção do legislador de não se estender seu alcance à Justiça Estadual. Ocorre que, por se entender que a restrição imposta pelo dispositivo legal em testilha à sua aplicação também no juízo estadual fere o princípio constitucional da isonomia, sendo portanto inconstitucional, não se justifica que se amplie seu alcance a fim de corrigir a alegada distorção. Não se pode olvidar que o Poder Judiciário, ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma, não poderá mudar seu sentido ou lhe conferir uma maior amplitude a fim de sanar uma eventual distorção, sob pena de atuar como legislador positivo, invadindo a seara de competência do Poder Legislativo, extrapolando suas atribuições previstas constitucionalmente. Reconhecendo-se a inconstitucionalidade de um dispositivo legal, deverá o juiz deixar de aplicá-lo, limitando-se a abdicar de utilizar a norma que entenda incompatível com o texto constitucional. Já decidiu o E. Supremo Tribunal Federal que: “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar nº 74, de 20.05.93 (artigo 270 e seus parágrafos 1º e 2º, bem como as expressões ‘não alcançados pelo artigo anterior’ constantes do caput do artigo 271). – Não só a Corte está restrita a examinar os dispositivos ou expressões deles cuja inconstitucionalidade for argüida, mas também não pode ela declarar inconstitucionalidade parcial que mude o sentido e o alcance da norma impugnada (quando isso ocorre, a declaração de inconstitucionalidade tem de alcançar todo o dispositivo), porquanto se assim não fosse, a Corte se transformaria em legislador positivo, uma vez que, coma supressão da expressão atacada, estaria modificando o sentido e o alcance da norma impugnada. E o controle de constitucionalidade dos atos normativos pelo Poder Judiciário só lhe permite agir como legislador negativo…” (g.n.). De outra banda, deve-se observar que o controle de constitucionalidade, tanto o preventivo, exercido também pelo Poder Executivo através do veto, quanto o repressivo, exercido pelo Poder Judiciário, de forma difusa ou concentrada, deve ser exercido com a cautela de se preservar a intenção do legislador. De acordo com o Princípio da Divisibilidade da Lei, aceitos tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência pátria, pode-se reconhecer a inconstitucionalidade de apenas parte da lei, desde que o restante possa subsistir de forma a autônoma e preserve a vontade do legislador. Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, ao comentarem as decisões judiciais no controle concentrado de constitucionalidade, atestam a possibilidade de declaração parcial de inconstitucionalidade, desde que não haja uma relação de vinculação que impeça a divisibilidade da norma; todavia, “impõe-se verificar, igualmente, se a norma que há de subsistir após a declaração de inconstitucionalidade parcial corresponderia à vontade do legislador. Portanto, devem ser investigadas não só a existência de uma relação de dependência (unilateral ou recíproca), mas também a possibilidade de intervenção no âmbito da vontade do legislador” (grifo do original). No mesmo sentido Regina Maria Macedo Nery Ferrari , citada por Paulo Hamilton Siqueira Jr., ao afirmar que “se eliminada a parte considerada inconstitucional, a outra parte, que compõe o mesmo ato e que assim não for considerada, quando possuir sentido tal que possa ser executada conforme a intenção do legislador e realizar o objetivo proposto pela norma, deve ser mantida.” (g.n.) Deve-se ressaltar que os mesmos limites impostos ao Poder Judiciário no controle concentrado de constitucionalidade também devem ser observados ao se realizar o controle difuso. Buscando melhor esclarecer o argumento ora expendido, pedimos vênia para lançar mão do seguinte exemplo hipotético: imagine-se que uma lei estatua que “é concedido aumento de cinqüenta por cento nos vencimentos dos funcionários públicos cujos nomes comecem com a letra A, C ou F”. Esse dispositivo seria inconstitucional, por violar, flagrantemente, o princípio da isonomia. Poderia o julgador, com base nesse dispositivo – inconstitucional, como visto – estender aumento aos demais funcionários públicos, em obediência ao princípio da isonomia? Entendemos que não. Assim agindo, o julgador estaria ampliando a esfera de aplicação da lei (violando a intenção do legislador) e, por isso, legislando, em afronta ao princípio constitucional da separação de poderes. Note-se: inconstitucional é a norma, por violação ao princípio da isonomia, e assim esta deve ser declarada. Sempre esposando o mesmo raciocínio, a Corte Constitucional Pátria também já decidiu em caso análogo ao exemplo citado que: “No tocante à alegada violação ao artigo 5º, caput, da Carta Magna, o que pretendem os recorrentes é que, com base no princípio constitucional da igualdade, lhes seja estendida a transferência determinada pelo Decreto-Lei 2.225/85. Ora, se esse Decreto fosse inconstitucional nessa parte por violação do princípio da igualdade, sua declaração de inconstitucionalidade teria o efeito de tê-lo como nulo, não podendo, portanto, ser aplicado às categorias por ele beneficiadas, e não o de estender a transferência por ele concedida a outra categoria que ele não alcança. Em se tratando de inconstitucionalidade de ato normativo, o Poder Judiciário atua como legislador negativo, jamais como legislador positivo. Portanto, a acolhida da pretensão dos ora recorrentes é juridicamente impossível por parte do Poder Judiciário.” No caso em testilha, a inconstitucionalidade, em face da afronta ao princípio da isonomia, é da vedação imposta pelo parágrafo único do artigo 2º da Lei 10.259/01 à aplicação do conceito ampliado de crimes de menor potencial ofensivo ao juízo estadual, representada pela expressão “para os efeitos desta lei”. Conforme o acima exposto, seria defeso ao Judiciário declarar a inconstitucionalidade parcial do referido dispositivo legal, ou seja, somente quanto à expressão “para os efeitos desta lei”, que impõe a mencionada restrição, dando maior amplitude à sua aplicação, entendendo-se revogado o artigo 61 da Lei nº 9.099/95, sob pena de se atuar como legislador positivo e contrariar a vontade do criador da lei, o que não lhe é permitido. Também neste sentido já decidiu a Suprema Corte: “Ora, se a Lei mais benigna tivesse ofendido o princípio da isonomia, seria inconstitucional. E não pode o Juiz estender o benefício decorrente da inconstitucionalidade a outros delitos e a outras penas, pois se há inconstitucionalidade, o juiz atua como legislador negativo, declarando a invalidade da lei. E não como legislador positivo, ampliando-lhe os efeitos a outras hipóteses não contempladas.” Conseqüentemente, em face da inconstitucionalidade do tratamento dicotômico dado pelo artigo 2º, p. u., da Lei nº 10.259/01, aos delitos de competência da Justiça Federal cuja pena máxima cominada esteja entre um e dois anos, por se ferir o princípio constitucional da isonomia, deverá se deixar de aplica-lo, mas nunca estender seu alcance para o fim de ampliar os limites impostos pelo artigo 61 da Lei nº 9.099/95. Não pode o aplicador do direito, sob o pretexto de sanar a inconstitucionalidade de uma norma legal, estender sua aplicação a casos originalmente não previstos. Não há falar-se que, reconhecendo-se a inconstitucionalidade apenas parcial da norma em testilha, não se estará ampliando seus efeitos, pois é claro que, neste caso, estar-se-ia aplicando a aludida lei a casos em que o legislador expressamente não desejou, ou seja, aos delitos de competência da Justiça Federal, revogando-se o artigo 61 da Lei nº 9.099/95. Assim, em face à afronta ao princípio constitucional da isonomia, deverá ser reconhecida a inconstitucionalidade de todo o parágrafo único do artigo 2º, da Lei nº 10.259/01, negando, portanto vigência ao novo conceito dado aos delitos de menor potencial ofensivo e, por conseguinte, em face da lacuna criada, aplicar-se ao Juizado Especial da Justiça Federal o artigo 61 da Lei nº 9.099/95, por analogia.