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Inconstitucionalidade da lei da gravidade

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Dênerson Dias Rosa A capacidade do ser humano em surpreender parece absolutamente ilimitada, mais ainda quando estamos nos referindo aos seres humanos responsáveis pela elaboração e votação de nossas leis. Recordo-me de um colega de trabalho que, por vezes, era ouvido exclamando em sua sala: “Pai, perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem”. Sempre tive a curiosidade em saber a que ele se referia, imaginava-o em algum ritual religioso quase diário, até um dia em que, entrando em sua sala, ouvi-o proferir a mesma célebre frase e pude finalmente compreendê-lo. Ele estava lendo o Diário Oficial. Até parece que estamos em um concurso de quem é capaz de promulgar a norma mais absurda e incoerente. Tenho receio que, além dos nossos carnaval e samba (o futebol, esse já era), venhamos a nos tornar notórios também por este constante e permanente festival. Vamos sair um pouco do plano abstrato e melhor exemplificar a questão. Segundo a legislação civil hoje em vigor, é possível ao marido “devolver” a mulher ao descobrir que esta já foi “deflorada”, anulando assim o casamento por erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge. Felizmente, quando do início da vigência do novo Código Civil, a ocorrer em 2003, tal situação não mais será permitida, do mesmo modo como não mais haverá impedimento a que o “adúltero”, uma vez divorciado, contraia casamento com o seu “cúmplice”, todavia o adultério ainda continua, no Código Penal, definido como crime, com pena de detenção prevista de 15 dias a 6 meses. Para aqueles que defenderão a situação argüindo que estas leis datam de quase um século atrás, vamos nos apegar a um fato bem mais recente, a lei de porte de armas, (lei n.º 9.437/97), amplamente conhecida e que trata também dos crimes correlatos à utilização de armas de fogo. Dois dos crimes nela estabelecidos são: “utilizar arma de brinquedo capaz de atemorizar a terceiro com o fim de cometer crimes” e “suprimir ou alterar qualquer sinal de identificação de arma de fogo”, sendo para eles estabelecidas, respectivamente, as penas de 1 a 2 anos e 2 a 4 anos de reclusão. Em princípio não se verifica problema algum em definir-se esses atos como crimes, bem como em estipular-se tais penas para os mesmos, mas, quando analisado o conjunto penal, aí sim passamos a ter uma absoluta incoerência. Segundo o Código Penal, o homicídio culposo (aquele no qual não houve a intenção em matar, mas agiu-se com negligência, imperícia ou imprudência) tem pena prevista de 1 a 3 anos, ou seja, usar uma arma de brinquedo para assaltar é quase tão “grave” quanto matar não intencionalmente outra pessoa. Quanto ao fato de se alterar qualquer sinal de identificação de uma arma de fogo, podemos concluir que é das mais graves infrações possíveis, posto que sua pena (2 a 4 anos) é bem maior do que a prevista para um homicídio culposo (1 a 3 anos). Como “eles” fazem as leis e nós é que temos que cumpri-las (já que a imunidade parlamentar se tornou efetivamente uma impunidade parlamentar), talvez pudéssemos alterar a frase a que me referi no início para: “Pai, cuidai de nós, porque eles não sabem o que fazem.” Cada vez que descubro que um novo projeto de lei foi apresentado, tenho um frio na barriga só de imaginar o que mais pode sair daí. Tende-se a acreditar que, havendo tantos parlamentares, será fácil que um absurdo seja facilmente detectado e não aprovado, mas, se algum dos leitores já presenciou alguma votação legislativa, talvez então compartilhe comigo o sentimento refrigerante da região abdominal. Ouve-se no sistema de som: “Colocado agora em pauta o projeto de lei n.º xx, já aprovado pela Câmara de Constituição e Justiça. Vamos agora proceder à votação.” Em muitas das vezes a maioria dos parlamentares desconhece completamente o teor do projeto, mas mesmo assim não se abstém de votá-lo. Talvez não seja devaneio imaginar o que aconteceria caso alguns parlamentares, não concordando que os objetos, ao serem atirados, “caíssem” para baixo, apresentassem um projeto de Emenda Constitucional determinado que doravante vigeria no Brasil o princípio jurídico da anti-gravidade. Provavelmente a natureza, tal como o faz a população brasileira, rejeitasse completamente essa normatização absurda e incoerente, fazendo desta mais uma norma que “não pegou”, mesmo correndo o sério risco de ser judicialmente acionada. Não acredito que a natureza, tendo suas leis físicas imutáveis, vá se curvar ao poder democraticamente conferido aos parlamentares, mas me traz alguma diversão imaginar como seria se acidentalmente isso acontecesse: Eu quebrando um ovo no intuito de fritá-lo e vendo-o vagarosamente subir (ninguém determinou que a anti-gravidade fosse tão forte como hoje o é a gravidade), flutuando graciosamente em sentido ascendente, e delicadamente se esborrachando no teto de minha cozinha. Desde que este devaneio me ocorreu pela primeira vez que, ao quebrar um ovo, sempre o imagino “caindo” para cima, todavia, sempre me decepciono. Pensando melhor, até que seria divertido se algumas dessas leis absurdas e incoerentes tivessem como autor de seu projeto um parlamentar com grande senso de humor, poderíamos, ao contrário de hoje, ao menos rir dos absurdos habitualmente praticados. Dênerson Dias Rosa é Consultor Tributário da Tibúrcio, Peña & Associados S/C e ex-Auditor Fiscal da Secretaria da Fazenda de Goiás.