Íntegra da palestra de Roberto Busato em El Escorial

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Brasília, 16/07/2004 – Segue a íntegra da palestra “Cooperação Internacional: Uma Questão de Estado”, ministrada na manhã de hoje (16) pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato: “Senhoras e senhores Quero inicialmente me congratular com os organizadores deste ciclo de palestras, reunidas sob o título geral de “Tensiones Actuales de La Libertad Y Los Derechos”, pela atualidade e importância dos temas selecionados. Quero cumprimentar os palestrantes que me precederam e me deram o ensejo de ampliar conhecimentos e visão crítica diante dos desafios de nossa realidade contemporânea. O tema que me coube é de fundamental importância para a compreensão do cenário mundial dos nossos dias: “A Cooperação Internacional: uma Questão de Estado”. Como se sabe, a cooperação internacional, num contexto geopolítico tenso e complexo como o que vivemos, é, antes de tudo, um instrumento a serviço da paz. Da paz e da concórdia entre os povos. Favorece o desenvolvimento, auxilia na promoção de mudanças estruturais nos sistemas produtivos e propicia, sobretudo aos países em desenvolvimento, a superação de restrições e limites, que tolhem o seu crescimento econômico. Sendo, como é, instrumento de relacionamento entre povos e culturas, depende fundamentalmente da iniciativa e do apoio dos Estados. Não há dúvida de que é possível fomentá-la por meio do intercâmbio de organizações da sociedade civil. Mas, sem a articulação dos governos, perde em consistência e em magnitude. Não pode, porém, estar apenas nas mãos dos governos. A sociedade civil organizada deve envolver-se cada vez mais nesse processo, para humanizá-lo mais e impedir que se submeta completamente à lógica da política e da diplomacia, nem sempre favoráveis ao ser humano, razão e destino de todas essas ações. Não esperem de mim uma palestra técnica, de especialista na matéria. Não sou diplomata, nem político, nem economista. Sou advogado e, como tal, me interessa buscar a lógica do Direito, não no seu sentido puramente formal, mas em sua essência filosófica. Daí porque pretendo abordar o assunto sob o ângulo fundamentalmente humanitário, tendo em vista a correção de assimetrias, que comprometem o equilíbrio econômico e geopolítico do planeta e ameaçam a paz mundial. O mundo globalizado em que vivemos, em que a Internet materializa o conceito de aldeia global, que Marshall McLuhan universalizou na década de 60 do século passado, amplia os horizontes da cooperação e reduz a intermediação dos Estados. Mas não a dispensa. A sociedade civil tornou-se agente fundamental nesse processo. Mas são os Estados nacionais que podem conferir à cooperação o status de ferramenta geopolítica a serviço da paz. Não há cooperação internacional sem o reconhecimento prévio e recíproco da soberania entre os Estados. Muitas vezes, em nome da cooperação, exerce-se a tirania, profana-se a soberania de outro país. Chega-se mesmo a invadi-lo militarmente a pretexto de auxiliá-lo e chama-se a isso de cooperação. Mas aí não se trata da verdadeira cooperação, que pressupõe respeito à identidade nacional, à cultura e ao sagrado princípio da autodeterminação dos povos. Por essa razão, a idéia de Estado hegemônico, universal, onipresente, como intentaram ser alguns impérios da Antigüidade, como o Grego e o Romano, conflita com o espírito de cooperação. Enquanto este supõe a diversidade cultural e a soberania numa palavra, a alteridade, aquele busca a uniformidade e a submissão. A Europa já sonhou no passado com o ideal etnocentrista, fundado na unidade religiosa. Não funcionou. Não evitou guerras, nem melhorou a qualidade de vida. Mas acabou disseminando a idéia de cooperação como antídoto ao surgimento de um estado hegemônico. Thomas Hobbes, o filósofo inglês do século XVII, via a cooperação internacional como decorrência não de um processo natural de aproximação entre os povos, mas exatamente do contrário. Tinha visão cética das relações internacionais, que chegou a classificar como “a guerra de todos contra todos”, temperada apenas pela moderação imposta pela razão e o auto-interesse. Segundo ele, “os homens não vivem em cooperação natural, como as abelhas ou as formigas. O acordo entre elas é natural; entre os homens é artificial. Os indivíduos só entram em sociedade quando a preservação da vida está ameaçada”. Seria, então, a tensão o estado natural na relação entre os indivíduos e os povos, e a cooperação um dos instrumentos de distensão, o que confirma o que disse no início: a cooperação como um instrumento a serviço da paz. A partir do fim da Primeira Guerra Mundial, o ideal de cooperação, até então exercido em caráter bilateral, assume a forma multilateral, a partir do surgimento de um organismo com essas características, a Liga das Nações. Mas é uma experiência ainda incipiente, interrompida pela Segunda Guerra Mundial. O atual sistema de relações internacionais, estabelecido ao final da Segunda Guerra Mundial, consubstanciado no sistema de segurança coletiva, sob a égide da ONU, tem considerável diferença do sistema vigente ao tempo da Liga das Nações, e bem mais marcante ainda que os sistemas que vigoraram em séculos anteriores. O dado novo que a ONU introduziu foi o da preocupação com o nível do desenvolvimento econômico e social dos Estados menos favorecidos, que, desde então, tornou uma política básica. Enquanto nos séculos anteriores, no contexto das relações bilaterais, o que se buscava era o estabelecimento de regras de conduta que assegurassem a paz, por meio de normas proibitivas de ações perturbadoras, a partir da ONU a ênfase muda. Busca-se o estabelecimento de regras de comportamento e de incentivo às condutas de cooperação. Enquanto o Direito Internacional clássico era um direito do não-fazer, proibitivo, o (chamemo-lo assim) “Direito do Desenvolvimento”, desse período pós-ONU, consiste num conjunto de regras de cooperação. Basta ver que a Liga das Nações não previu mecanismos de construção da paz. Havia apenas organismos de prevenção da guerra: uma Assembléia-Geral, um Conselho Permanente e um Secretariado Geral. Já a ONU, ao lado desses três órgãos (sendo que o Conselho Permanente foi rebatizado de Conselho de Segurança), prevê um Conselho de Tutela (dedicado às tarefas de descolonização) e o importante Conselho Econômico e Social. Também é digno de registro, para indicar a distinção entre esses dois momentos Liga das Nações e ONU, o fato de a Carta das Nações Unidas estabelecer, em seu preâmbulo, como princípio, a “promoção do progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla”. No mesmo documento, consta ainda, como objetivo permanente, “empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos”. Em síntese, inscreve-se naquele momento o compromisso multilateral com a cooperação internacional, reiterado no parágrafo 3º do artigo 1º dessa mesma Carta, quando diz que é preciso conseguir: “(…) uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião (…) A própria ONU se autodefine, nesse documento, como uma agência de cooperação internacional, ao se apresentar como “um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns” a que parcialmente acabo de fazer referência. É impensável, pois, no mundo de hoje, falar de cooperação sem a intermediação dos diversos organismos multilaterais das Nações Unidas e sem o engajamento dos Estados nacionais. A cooperação, como afirma o tema desta minha palestra, é, de fato, uma questão de Estado, mas isso não impede que seja mediada ou pelo menos supervisionada por organismos multilaterais. E isso a distingue fundamentalmente da cooperação internacional no passado, dominada pela diplomacia bilateral. A diplomacia multilateral tem características distintas da clássica. As decisões dos Estados são submetidas a procedimentos que tendem a neutralizar posições egocêntricas em favor de políticas de blocos e alianças, em que prevalece um ambiente mais democrático e pluralista. No multilateralismo, há a prevalência de tratados, em que o domínio hegemônico de poucos é menos favorecido. No campo da cooperação internacional, o multilateralismo, sobretudo quando exercido por organismos internacionais como a ONU, reduz imensamente a margem de paternalismos e pressões. Reduz, mas não extingue. O próprio conceito de cooperação internacional ainda passa a idéia de ajuda do mais forte ao mais necessitado, sugerindo subliminarmente alguma tutela. Cito aqui, especificamente, a título de exemplo, acordo de cooperação internacional entre o órgão norte-americano de combate às drogas, o DEA (Drug Enforcement Administration), e a Secretaria Nacional Antidrogas, do governo brasileiro, criada em 1997. Conforme registrou a imprensa do meu país naquela oportunidade, foi o dinheiro decorrente daquela cooperação que permitiu estruturar fisicamente a Secretaria brasileira, que, no entanto, teve que se submeter aos ditames estratégicos do DEA para recebê-lo. Os jornais brasileiros da época publicaram (e não houve desmentidos posteriores) declarações de autoridades norte-americanas do setor avisando, mais ou menos nestes termos: “O dinheiro é nosso e as regras também”. Ou seja, prevaleceu a razão do mais forte, ferindo uma premissa filosófica básica da cooperação, que é o reconhecimento recíproco da soberania entre os cooperados. Se estendermos esse exemplo para a área econômica, será possível constatar abusos ainda maiores. Há organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, para citar apenas dois, que exercem (ou por outra, deveriam exercer) no campo econômico-financeiro papel equivalente ao expresso no texto da Carta da ONU, que já mencionei. São organismos multilaterais, criados para exercer esse espírito de cooperação, voltado sobretudo para atender os mais necessitados e impedir que se estabeleça uma vontade hegemônica, que imponha sobre os demais os seus interesses. Se o princípio da cooperação internacional, conforme a Carta da ONU, é o de “promover o progresso econômico e social de todos os povos”, organismos financeiros multilaterais, como os que citei, são ferramentais fundamentais, que deveriam estar voltadas para aqueles compromissos políticos e filosóficos que justificaram sua criação. Não é assim, no entanto, que ocorre. Esses dois organismos FMI e Bird funcionam como agências financeiras, que possuem acionistas e que os tratam de acordo com o volume de capital que nela investiram. Prevalece a vontade de quem tem mais. O princípio da multilateralidade é profanado por razões contábeis. E assim é que os Estados Unidos impõem sua vontade aos demais acionistas, ditando-lhes o próprio modelo econômico a ser seguido. Basta ver o chamado Consenso de Washington, que, a partir de 1989, impôs a toda a América Latina o modelo neoliberal, que aprofundou a pobreza e desnacionalizou parte significativa do patrimônio daqueles países, sem oferecer-lhes qualquer tipo de compensação. Não ficaram melhores; não superaram suas mazelas, nem melhoraram sua capacidade de honrar compromissos com os credores. E ainda: feriu-se, na imposição daquele modelo, a soberania nacional naquilo que de mais fundamental pode haver: na gestão de sua riqueza e no princípio da autodeterminação. Isso explica porque, no meu país, a troca de um governo conservador por outro de esquerda, ocorrida há quase dois anos, não resultou em nenhuma mudança substantiva na economia. Preserva-se o mesmo modelo, que agrava a concentração de renda e, em decorrência, aumenta a pobreza e o desemprego. E, de quebra, gera enorme frustração popular e descrença nas instituições do Estado democrático de Direito. Não é um caso isolado, o do meu país. O que vemos, pela mídia internacional e pelos relatórios periódicos dos diversos organismos das Nações Unidas, é a demonstração de que cresce o número de pobres e miseráveis do planeta; de que a riqueza está cada vez mais concentrada nos países ricos; e de que o fluxo migratório dos países periféricos para os centrais aumenta, gerando transtorno e violência. Na raiz disso, temos a distorção do espírito de cooperação internacional, onde se faz mais necessário: na distribuição e administração da riqueza. O fim da Guerra Fria, a partir de 1992, com o fim da União Soviética, agravou esse quadro. Sem a bipolaridade estabelecida após a Segunda Guerra Mundial, passou a prevalecer a vontade hegemônica dos Estados Unidos, que aprofundaram e passaram a exercer com maior freqüência sua superioridade militar, econômica e tecnológica. A própria ONU, instrumento da multilateralidade, passou a ser contestada e perdeu força e prestígio perante as nações filiadas. Basta lembrar os conflitos recentes entre o governo norte-americano e o Conselho de Segurança da ONU, nos momentos que antecederam a invasão do Iraque, em 2003. Em outros momentos, o princípio da multilateralidade foi igualmente afrontado pela potência hegemônica. Cito dois fatos recentes que devem estar na memória de todos: a recusa de apoio ao Protocolo de Kioto, de defesa do meio ambiente, e o não reconhecimento ao Tribunal Penal Internacional de Haia. São duros golpes ao princípio da multilateralidade e ao espírito da cooperação internacional. Mas ambas a multilateralidade e a cooperação internacional sobrevivem e cumprem o papel que lhes cabe de fator estratégico fundamental no desenvolvimento dos países, sobretudo no campo tecnológico. A exclusão social, drama hoje planetário, que atinge inclusive países do chamado Primeiro Mundo, tem como um de seus subprodutos mais complexos a exclusão digital. O avanço vertiginoso da tecnologia, que a cada ano torna obsoletos equipamentos que a maioria da população da Terra nem sabe que chegaram a existir, cria dois mundos, desiguais e crescentemente incomunicáveis. Em meu país, com uma população de 180 milhões de habitantes, o universo dos excluídos é de cerca de três quartos uma proporção que penso ser equivalente à dos excluídos do planeta. Um contingente humano que, em meu país, ultrapassa os 100 milhões algo em torno de dez vezes a população de Portugal. Na escala planetária, conta-se na escala dos bilhões. Só a cooperação internacional pode fazer frente a esse monumental desafio de equalizar o conhecimento e pôr fim ao imenso contingente humano dos sem-tecnologia, dos excluídos digitais. Como fazê-lo sem ferir os princípios de autonomia e soberania? Como fazer para que a cooperação assimétrica isto é, entre países desiguais não derive para a tutela do mais forte? Há deveres também a serem observados pelos países menos desenvolvidos para resguardar-se. Não se pode supor que não tenham responsabilidades consigo mesmos, num mundo cada vez mais interdependente e globalizado. A cooperação internacional não pode ser encarada, sobretudo no campo da tecnologia, como pretexto para o não cumprimento de agendas internas de reformas que estabeleçam bases estruturais capazes de tornar o intercâmbio proveitoso e sem efeitos colaterais danosos. Os países, antes de se queixarem de seus parceiros, devem cuidar de si mesmos. O Brasil, a duras penas, vem empreendendo já há alguns anos programas de reformas estruturais nesse sentido, com resultados ainda insatisfatórios. Há que se investir mais em educação. Sem capital humano, o proveito dos tratados de cooperação será sempre reduzido. Como disse, em recente estudo a respeito desse tema, o chanceler brasileiro Celso Amorim, “só coopera com outros países quem já dispõe de certa base científica e tecnológica própria”. E mais: “Apelar para a cooperação como fonte exclusiva ou principal de desenvolvimento é condenar-se à dependência e à submissão”. Subscrevo essas afirmações. Deduz-se daí que a cooperação só será verdadeiramente frutífera quando houver complementaridade real de interesses. Tal complementação, como é óbvia, será facilitada quando a cooperação se der entre nações de nível de desenvolvimento equivalente, mas pode estar presente também em relacionamentos menos simétricos. A cooperação em ciência e tecnologia hoje vital para impulsionar o desenvolvimento e reduzir o contencioso social em países como o Brasil não pode estar isolada das relações diplomáticas. No caso brasileiro, as relações com o Leste europeu, que estiveram reprimidas durante décadas em face da Guerra Fria, encontram ainda hoje obstáculos de difícil transposição no campo comercial, sobretudo no que se refere à exportação de serviços e produtos de maior densidade tecnológica. O desafio brasileiro e dos países emergentes é o de combinar esforços em diferentes direções, aumentando sua capacidade própria de absorção e geração de tecnologias (o que inclui, em alguma medida, ações de proteção à sua indústria), sem perder de vista oportunidades efetivas de cooperação com outros países. Nesse sentido, a formação de blocos econômicos quer regionais, como o Mercosul, quer transcontinentais, envolvendo países em condições similares de desenvolvimento é um caminho inevitável. Mesmo nesse âmbito, o espírito de cooperação esbarra freqüentemente nas respectivas assimetrias. Veja-se, a esse respeito, os freqüentes choques de interesse entre Brasil e Argentina no âmbito do Mercosul. A indústria brasileira, mais competitiva, gera ocasionais prejuízos à indústria Argentina, provocando atritos políticos que, no entanto, não comprometem os objetivos fundamentais do bloco econômico, que são o de reduzir assimetrias maiores em relação aos países desenvolvidos. Falamos até aqui de cooperação internacional nos campos econômico-financeiro, tecnológico e educacional, que envolvem relações de domínio e tutela. Há outros campos menos assimétricos, no sentido de que, sem embargo da superioridade de um ou mais parceiros, os interesses recíprocos envolvidos são equivalentes e, em tese, os colocam em patamares de equilíbrio. É o caso, por exemplo, do combate ao crime organizado e ao narcotráfico. E é também o caso do combate a doenças de natureza pandêmica, como a Aids. Em ambos as situações, as fronteiras nacionais, do ponto de vista prático, inexistem e a soberania torna-se quase uma abstração jurídica, já que é desprezada pelos delinqüentes e pelas endemias. O único modo eficaz de combatê-los aos delinqüentes e às endemias é por meios da cooperação internacional, já que o crime organizado é transnacional e as endemias não usam passaporte. Em ambos os casos, os países mais fortes são os que têm maiores interesses a preservar e isso reduz a assimetria nas relações com os países periféricos. Cabe, portanto, aos mais desenvolvidos fatia proporcional no desembolso das despesas e nos investimentos. E isso muitas vezes gera distorções em relação ao princípio da auto-determinação. Já citei (e reitero) o caso brasileiro de cooperação com os Estados Unidos no combate às drogas a imposição norte-americana de suas estratégias repressivas à polícia brasileira, sob pena de sustar os recursos da cooperação. O Brasil, porém, tem sabido resistir em alguma medida. Até hoje, por exemplo, não cedeu aos norte-americanos espaço territorial na Amazônia para ações militares pretensamente voltadas para combater narcotraficantes. O Exército brasileiro é cioso de seu domínio na região e o único a deter sofisticada tecnologia de guerrilha na selva. Sabe que a Amazônia envolve interesses geoeconômicos e estratégicos de grande magnitude. É um santuário da biodiversidade e o maior campo de investigação biogenética do planeta. Daí o cuidado com a preservação da soberania daquele território. O mesmo, porém, não ocorre com países vizinhos que detêm também parcela física da Amazônia casos da Colômbia, que admitiu presença de militares norte-americano em seu território, e do Suriname, que autorizou exercícios de guerra em seu território, fronteiriço ao Brasil. São exemplos de cooperação internacional com conteúdo de tensão grave, que, em vez de garantir a paz, ameaça gerar contenciosos delicados, que nada têm a ver com o teor dos tratados de cooperação em vigor. É a cooperação profanada em nome de interesses hegemônicos. Temos aí o duelo que mencionei no início entre a multilateralidade e a visão hegemônica um conflito absolutamente atual. Os Estados Unidos tem demonstrado desprezo sistemático pelo Direito internacional, pelas normas e tratados que eles mesmos ajudaram a criar. Já citei a recusa a assinar o Protocolo de Kioto e o tratado que criou o Tribunal Penal Internacional. Também sabotaram as tentativas de limitar e conter as armas biológicas, embora tenham pressionado os demais países a fazê-lo, chegando a invadir o Iraque sob esse pretexto. Em parte, essa política decorre da administração conservadora de George W. Bush, que tenta romper, com sucesso, com uma tradição que datava da era Roosevelt, segundo a qual a diplomacia política, econômica e militar de Washington era exercida através de longa série de consultas e entendimentos (cristalizados em acordos, convenções e tratados de cooperação) e não apenas através da arrogância pura. O governo Clinton, ao menos, teve o cuidado de manter as aparências. Bush, não: não reconhece acordos ou tratados a não ser os que sejam de seu interesse. O raciocínio é este: “Somos os mais fortes e nossos interesses serão defendidos, doam a quem doer”. Nada menos em consonância com o espírito da cooperação. E é o que ocorre em relação ao combate ao terrorismo, que justificou a invasão do Afeganistão e do Iraque, com as conseqüências desastrosas em vidas humanas que estamos vendo e sem qualquer eficácia na inibição efetiva dos atos de terror. Onde os Estados Unidos entenderem que seus interesses estão em jogo, nada os deterá é o que já disse o governo Bush. Nem a ONU, nem o clamor de sua própria opinião pública. Ainda que se considere que os Estados Unidos, como país soberano, têm o direito de não assinar tratados, protocolos ou acordos mesmo na contramão dos interesses da maioria das nações do planeta, o que dizer de tratados, acordos e protocolos já assinados e que não são cumpridos? O Tratado sobre armas antimísseis assinado com a então União Soviética em 1972 é um bom exemplo. Enquanto foi de interesse, foi mantido. Agora que Washington quer fazer um escudo estratégico no espaço, aquele Tratado pode ser ignorado e, se os russos ou mesmo o resto do mundo não gostarem, azar o deles. Essa conduta hegemônica fere os fundamentos da multilateralidade e ameaça a própria cooperação internacional. Quando os temas em pauta não são tão vitais, a potência hegemônica até se submete à sanção multilateral. Há poucas semanas, os Estados Unidos se submeteram a um julgamento desfavorável da Organização Mundial do Comércio diante do Brasil, que reclamou de concorrência desleal no mercado de algodão, em que os produtores norte-americanos receberam subsídios do governo. Existem muitas regulamentações e tratados, sobre os mais diferentes temas, em vigor e a maioria dos países, inclusive os Estados Unidos, aceita a jurisdição de alguns órgãos internacionais para decidir quem tem razão em questões comerciais, de direitos humanos etc. No entanto, para as grandes questões, o que predomina ainda é o poder (financeiro ou bélico ou ambos) dos envolvidos. Se os Estados Unidos são condenados pela OMC a pagar uma indenização ao Brasil no caso do algodão, isso não impede que, na hora de decidir as regras do comércio internacional na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ou do fluxo de capitais dentro do FMI, caiba-lhes exercer plenamente o poder decisório. O historiador Eric Hobsbawm escreveu recentemente que um dos trunfos da hegemonia americana no mundo hoje é escrever as regras do jogo do capitalismo global e fazer com que os outros países as cumpram, mas, quanto a eles mesmos, só a cumprem quando julgam vantajosas. Apesar de tudo isso, continuamos a acreditar que o Direito internacional é um excelente campo de manobra para a disputa contra os poderosos, um braço a serviço da multilateralidade e da cooperação. Pode não deter de maneira plena a ação hegemônica, mas em alguma medida a constrange. Não se pode ser contraditório o tempo inteiro. Não se podem defender posições politicamente corretas como o livre comércio, o desarmamento global, a democracia, os direitos humanos, o meio ambiente, ajudando a criar tratados e acordos em torno delas e simplesmente descumpri-las o tempo todo. Em alguma medida, o Direito Internacional inibe, pela força moral que exerce. Basta ver o empenho norte-americano em conseguir algum tipo de aval da ONU antes de invadir o Iraque. Poderiam fazê-lo simplesmente ignorando aquele organismo, mas sentiram-se constrangidos de fazê-lo. E agora, que a invasão mostrou-se um fator de desgaste interno e externo, recorrem à ONU para encontrar uma solução consensualizada. Não deixa de ser um reconhecimento mesmo tardio ou ocasional aos princípios da multilateralidade. E é preciso saber explorar esses momentos, saber fazer desse limão uma limonada. Isto é, submeter a potência hegemônica aos princípios que ela profanou na defesa de seus interesses solitários. O fortalecimento à cooperação internacional é imperativo de um mundo que se quer mais próximo dos fundamentos da paz e da justiça. A cooperação internacional é um instrumento essencial para a promoção do desenvolvimento dos países e para a dotação de capacidade técnica e comercial a empresas, universidades e institutos de pesquisa, aliando a busca de bem-estar da população nacional às exigências de competitividade da nova economia mundial. É dever de todos os Estados nacionais trabalhar por seu fortalecimento. E é dever de todo cidadão, não importa de que país, engajar-se nesse processo. Como trabalhador do Direito, com a responsabilidade adicional de presidir a Ordem dos Advogados do Brasil, creio firmemente nesse caminho, um roteiro ainda em construção, que um dia pode nos levar à tão sonhada e até aqui utópica paz universal. Que assim seja. Muito obrigado”.