Ministério Público não pode apelar de absolvição de réu
Em uma democracia, somente se apela por liberdade! Como proclamou o STF, citando João Mendes Júnior, no HC 73.338-7 RJ, “o processo penal só pode ser concebido — e assim deve ser visto — como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu” Com efeito, sem embargo de se antever as veementes objeções quanto ao presente entendimento jurídico-constitucional, o fato é que, após a Emenda Constitucional nº 45, é inconstitucional a base legal (art. 593, do CPP) naquilo que autoriza o Ministério Público a apelar contra sentença criminal, para reformá-la com vistas a condenar o réu ou a agravar-lhe a condenação. Lembrando-se que o Código de Processo Penal data de 1941, momento em que o Brasil não era democrático e vivia sob o império de Estado de Exceção, vítima do golpe político de 1937, tanto que a norma não foi editada por lei, mas, sim, pelo abominável decreto-lei, que demonstra ter sido obra de um único homem, o ditador da época, ao invés de consenso das forças vivas da Sociedade Civil. Pois bem. A partir da promulgação da EC nº 45, que na Constituição Federal inseriu o inciso I-A, no artigo 92, instituindo o Conselho Nacional de Justiça, bem como, incluiu dentre os Direitos e Garantias Fundamentais, do art. 5º, o inc. LXXVIII, que a todos, no âmbito judicial, assegura-se razoável duração do processo e os meios que garantam sua celeridade de tramitação, interpretados sistematicamente com o caput do art. 1º, que consagra o Estado Democrático de Direito, como também com o inc. LXIX, do art. 5º, que prevê o mandado de segurança, tudo à luz dos ditames do Princípio hermenêutico de Unidade da Constituição associado ao Principio da Eficiência Constitucional que impõe que o dispositivo é esculpido na Constituição Federal “com vistas à sua aplicação, é dizer: voltado à produção de efeitos práticos” (sic, Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 1998, p. 72), chega-se à insofismável conclusão de que a previsão infraconstitucional de que o Ministério Público pode apelar em matéria criminal em desfavor do réu tornou-se manifestamente inconstitucional. O modelo atual do Estado Democrático, que ganha novo impulso a partir da segunda metade do século XX, vem se desenvolvendo para garantir a pessoa humana, diante de massacrantes estruturas objetivas, embora por estas mesmas pessoas construídas, pois já manifestaram sua inominável e odiosa capacidade de oprimi-las e degradá-las em sua dignidade. Em razão disso, vem-se firmando em bases cada vez mais sólidas a concepção de um direito penal, aí incluído o aspecto processual, em caráter mínimo. Um dos autores que mais se notabilizou na construção deste ideal é o filósofo e penalista italiano Luigi Ferrajoli, transmitindo a lição clássica de Francesco Maria Pagano, de que “Um empenho extremado em punir os réus, um excessivo rigor, um apressado castigo (…) arrastam consigo forçosamente efeitos funestos.” (grifamos, Direito e Razão, ed. RT, 2002, p. 85) Isto bem evidencia que a tutela penal e a respectiva ação judicial não são instrumentos de vingança coletiva contra o cidadão anônimo, para subjugá-lo e colocá-lo de joelhos diante do império do Estado, mas sim, estão a tutelar interesses indisponíveis da Sociedade Civil, que exige harmonia e paz em sua dinâmica de existência. Por conta disto, no plano do Poder Judiciário brasileiro, o órgão acusador descaracterizou-se da condição de parte para aproximar-se da de Magistrado, tanto que sujeito aos mesmos impedimentos e suspeições (art. 258, do CPP), bem como, na estrutura física da prestação jurisdicional senta ao lado do Julgador, enquanto o réu fica ao lado de seu Advogado, expressando simbolicamente que o Ministério Público, apesar de acusador, não é o ex adverso do querelado, muito menos o paladino vingador da Sociedade Civil. Daí o art. 129, da CF, listar em seus incisos as atribuições do Ministério Público, e, dentre elas, no inc. I, restringir-se a atribuição de “promover privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. Note-se que, na atribuição constitucional, em nenhum momento o Constituinte impingiu ao Ministério Público o dever de recorrer, cujo produto, ou seja, o recurso em si, não integra e nem é extensão da promoção da ação penal, daí porque, conquanto o direito da Sociedade Civil de ação penal seja indisponível, a apelação pela acusação é facultativa. Muito pelo contrário, o Constituinte refere-se a recurso sempre como instrumento inerente ao direito de defesa e não ao impulso acusatório, como se vê no inc. LV, do art. 5º, da CF, pela expressão “defesa, com os … recursos a ela inerentes” (grifamos, sic). Não há na CF qualquer previsão da qual se depreenda objetivamente o duplo grau de jurisdição, muito menos, em favor do impulso acusatório em sede de ação penal pública. No entanto, verifica-se na Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, que integrou o Direito nacional por força do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, consoante seu art. 8º, n. 2, letra h, que o duplo grau de jurisdição é garantia do réu e não da acusação, pois, por evidente, num Estado Democrático de Direito se apela pela e para a liberdade. Vale registrar a lição do Professor Barbosa Moreira, em que discorre ser a apelação o recurso que, mais do que qualquer outro, representa “o principal instrumento por meio do qual atua o princípio do duplo grau de jurisdição” (sic, Comentários ao CPC, v. 5, 1999, p. 402), consignando adiante que, quando do velho Portugal, ocorreram abusos na sua utilização, a emperrar a marcha dos processos, a exemplo do que ocorreu igualmente no tempo medieval, levando o Concílio de Trento a reagir, adotando medidas restritivas de seu uso. Preocupação esta, que retorna em nossos dias, no texto da Emenda nº 45, que impõe a celeridade processual. A busca intransigente da verdade real, que é principio básico do Direito Processual Penal, tem sentido quando é em favor do réu e não contra ele, posto que será ele oprimido em sua liberdade. Eis a razão pela qual ao sistema normativo penal, basta ao réu a dúvida razoável para que não seja prejudicado em seu status libertatis, uma vez que isso implica ofensa ao soberano princípio do Estado Democrático, de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana. Apelar significa socorro! O próprio nomem iuris do citado recurso, “apelação”, demonstra seu caráter de defesa da situação aflitiva que é própria da pessoa humana e não da instituição do Parquet, que já submeteu ao crivo da Magistratura sua pretensão acusatória. O Parquet deve, data vênia, ficar aflito para ajuizar a ação penal contra quem de direito; e, não sofregar em razão da absolvição do demandado nesta, uma vez que, não se trata de um jogo de perde ou ganha, mas sim da busca da harmonia e paz social. Tanto que, à luz do paradigma da Advocacia Geral da União, não obstante o advogado da União seja obrigado a recorrer, somente podendo ser dispensado por determinação do Advogado Chefe do órgão, ao Ministério Público o instrumento do recurso de apelação é mera faculdade. Outro argumento relevante é que, quando se trata de direito indisponível, como o patrimônio público, mesmo na esfera civil, a decisão contrária não transita em julgado até que seja confirmada pela Instância Superior por força do reexame necessário, vulgarmente chamado de recurso obrigatório, o que demonstra, novamente voltando à esfera penal, cujos bens tutelados são mais relevantes, porque a liberdade prevalece ao patrimônio, a disponibilidade do direito de recorrer pelo Ministério Público em desfavor do réu, tendo em vista que, repita-se, é uma faculdade do Parquet. O Constituinte, antes da EC nº 45, aproximou-se desta consciência, de que é inadmissível o recurso para a prisão ou agravá-la, na medida em que no art. 105, inc. II, letra a, em sede de Recurso Ordinário, somente autoriza o duplo grau de jurisdição da decisão que denega o Habeas Corpus. Até a EC nº 45, no entanto, o recurso para a prisão ou para agravá-la por parte do Ministério Público era constitucionalmente sustentável porque, dentro de critérios de proporcionalidade, numa visão de unidade da Constituição, não havia outro remédio diante de desvios da Magistratura de instância original em sede de ação penal. Entretanto, a EC nº 45, tomou a opção e resolveu juridicamente a problemática dos desvios da Magistratura, pela instituição do controle externo do Poder Judiciário e a criação e inclusão dentre os seus órgãos, do Conselho Nacional de Justiça. Pois, no art. 103-B, prevê no Conselho Nacional de Justiça, nos termos do inc. X e XI, que nele haverá assento de dois membros do próprio Ministério Público e, ainda, consoante o § 4º, inc. III, que o órgão tem competência para receber e conhecer das reclamações contra os membros do Poder Judiciário, sem prejuízo da competência disciplinar ou correicional dos Tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas. Máxime porque, em que pese haver perdido o direito de apelar em desfavor do réu, eventual lesão ao direito líquido e certo da Sociedade Civil em razão de decisão ilegal do Juiz criminal passa a ser remediável pelo mandado de segurança, também previsto constitucionalmente no inc. LXIX, do art. 5º, pois, agora não mais é admissível o recurso próprio de apelação. O duplo grau de jurisdição no sentido da impugnação dos atos judiciais podem ocorrer de forma externa ao processo, como é a atual opção constitucional por força da EC nº 45, que remete o Ministério Público, quando inconformado pelo decreto liberatório, à reclamação ao Conselho Nacional de Justiça ou à impetração de Mandado de Segurança para cassar eventual violação de direito líquido e certo da Sociedade Civil. Até porque, a EC nº 45, inseriu nos Direitos e Garantias Fundamentais, o inc. LXXVIII, ao art. 5º, que a todos assegura a razoável tramitação do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, no que compreende evidentemente, em homenagem ao Princípio da Proporcionalidade, para promover a garantia de efetividade da tutela jurisdicional, restrição ao direito de recorrer, pois, a apelação pelo Ministério Público implica em delonga desnecessária do processo penal, cuja tramitação por si só constrange o réu, que já se encontra devidamente submetido à prestação jurisdicional penal pelo Magistrado a quo. A propósito, um dos subscritores da presente (Professor Doutor Willis Santiago Guerra Filho) vem defendendo esta tese desde seu concurso de professor titular de Direito Processual Constitucional da Universidade Federal do Ceará, cujo trabalho foi publicado sob o título “Processo Constitucional e Direitos Fundamentais”, São Paulo, edição original de 1999, e atual de 2005, p. 212. Por fim, quando um único Magistrado que seja, decrete sentença que o Ministério Público entenda indevidamente favorável ao réu, surge a este mesmo acusado, pelo menos, a existência de uma dúvida razoável em seu benefício, tanto quanto à prova, quanto à aplicação do Direito, devendo ser albergada pelo princípio clássico do Direito Penal, in dubio pro libertate. Isto porque, em casos gritantes deverá doravante o Ministério Público impetrar mandado de segurança em defesa de direito líquido e certo da Sociedade Civil; e, em casos de desvios funcionais do Magistrado, reclamar ao Conselho Nacional de Justiça. A partir da EC nº 45, em desfavor do réu, a sentença criminal não poderá ser reformada, somente anulada por vício judicial. É exagero a busca desmedida da verdade real e acerto jurídico em favor da acusação criminal – as quais, a rigor, jamais se obtém plenamente –, conforme vem repudiando as correntes mais modernas do pensamento penalista. Afinal de contas, é na primeira instância que se tem a presença física da pessoa do acusado, perante o Juiz, que aproxima a Magistratura da População e deve ser prestigiado em nome da harmonia e paz social, somente desautorizado em situação extrema de apelação pela liberdade; e, não de apelação pela prisão ou agravamento dela. De lege lata, constata-se a tendência moderna de direito processual em prestigiar a primeira instância, tanto que a Lei 10.352/2000, que alterou o art. 530, do CPC, passou a prever que somente caberá embargos infringentes quando a maioria do órgão colegiado reformar a decisão do Juízo a quo, de modo que, se a maioria do Tribunal de apelação acompanhar o Juiz a quo, seu veredicto original prevalecerá sobre o voto do membro divergente do próprio Tribunal, quando inclusive, é hierarquicamente superior ao prolator da decisão mantida. Assim sendo, pela EC nº 45, sistematicamente interpretada, foi debelado o imperativo, que havia anteriormente, de proporcionalidade para legitimar o recurso de apelação pelo Ministério Público em desfavor do réu, não obstante o duplo grau de jurisdição fosse garantia somente do acusado e estejamos num Estado Democrático de Direito. Tendo em vista que, ser o promotor da ação penal, conforme a atribuição constitucional, não coloca o Ministério Público como a figura axial da prestação jurisdicional, que pertence à Magistratura e deve se impor, não aceitando inconformismo, como faculdade, ou seja, juízo subjetivo dos homens, por parte dos membros do Parquet, não obstante, reconheça-se serem bem intencionados e patrióticos, responsáveis por muitas mudanças para melhor em nosso país. Reconhecida a inconstitucionalidade da previsão infraconstitucional que autoriza o Ministério Público recorrer em desfavor do réu, por conta da Reforma do Judiciário pautada na eficiência do Poder e não na erudição dos operadores, expressa na EC nº 45; o processo penal evitará delongas, haverá desafogamento do aparelho judiciário de instância recursal, que poderá concentrar-se em pleitos que combatem a perda da liberdade e não em pôr a pessoa humana no cárcere, cujos estabelecimentos prisionais nacionais são degradantes, bem como, o Ministério Público poderá canalizar seus esforços em processar os meliantes, ao invés de tentar agravar a situação de quem já passou pelo crivo jurisdicional criminal e, finalmente e fundamental, entregará no plano real o protagonismo da ação penal ao Magistrado, aquele que tem atribuição constitucional de ditar o Direito e decretar Justiça (cf. Erick Vidigal, Protagonismo Político dos Juízes, RJ, 2003), pois, à polícia cabe investigar, ao Ministério Público acusar, a Advocacia defender e ao Judiciário julgar.