Opinião: Apontamentos sobre desapropriação de bens imóveis gravados de usufruto
Luís Paulo Cotrim Guimarães é desembargador federal do TRF-3 e membro do TRE-SP.*
Muito já se estudou, é verdade, a respeito do nascimento e extinção do instituto do usufruto, com os aprofundamentos doutrinários merecedores dos mais incontestáveis aplausos a respeito deste direito real por excelência.
Mesmo assim, não vamos nos furtar de enfrentar um viés jurídico que atinge em cheio o direito do usufrutuário, qual seja, a extinção do usufruto quando decorrente de uma desapropriação, bem como as situações fáticas que podem influenciar o referido término do direito real.
Num primeiro momento, é nítido reforçar que o artigo 1.410 do CC não trata da desapropriação como hipótese de extinção do usufruto, ali elencando apenas a renúncia, a morte, o termo de duração, a extinção da pessoa jurídica, a cessação do motivo originário e a destruição da coisa. Mas seria fundamental fazer contemplar esta situação específica (desapropriação) no dispositivo em apreço?
Neste diapasão, insta esclarecer que a ocorrência de uma desapropriação de bem imóvel não tem o condão, tecnicamente falando, de extinguir o usufruto que gravava o bem. A doutrina civilista vem entendendo que, nessa hipótese, o que se dá é mais uma “modificação qualitativa do usufruto” do que propriamente uma causa de extinção, uma vez que, pela ocorrência da desapropriação, o usufruto ficaria subrrogado na indenização paga.
Nas palavras de Sílvio Venosa, “quando ocorre desapropriação, na indenização paga fica sub-rogado o usufruto, que pode ser utilizado para aquisição de outro bem, para onde se transfere o direito real” (Direitos Reais, ed. Atlas, 2001, p. 362).
Nos parece restar claro, num primeiro momento, que o ato do poder público expropriante — declarando um determinado bem imóvel como de utilidade pública — trará consigo, como corolário lógico, a perda de eficácia do direito de usufruto sobre o bem, assim ocorrendo com qualquer outro gravame real levado a registro.
Bem aponta Fioranelli que “uma vez declarado como de utilidade pública, o bem expropriado deixa de carregar o ônus real de usufruto, passando ao poder público livre e desembaraçado“.
Em verdade, o artigo 1.409 do Código já delineia uma solução para a desapropriação de bens imóveis gravados por usufruto, propondo a regra de sub-rogação, a saber: “também fica sub-rogada no ônus do usufruto, em lugar do prédio, a indenização paga, se ele for desapropriado (…)”.
Isso se traduz pela noção de que, a partir da publicação do ato declaratório de desapropriação pelo poder público, o direito do usufrutuário se tornará ineficaz no contexto da relação jurídica originalmente estabelecida, restando convertido em direito indenizatório, diante da nova relação jurídica estabelecida por força da ação do poder expropriante, dado o interesse social ou utilidade pública manifestados, na expressão legal do Decreto-Lei 3.365/41, com suas respectivas alterações.
Também não competirá ao usufrutuário ou ao nu-proprietário discutir, no âmbito do processo judicial de desapropriação, a existência ou não do interesse público trazido pelo ente expropriante como fundamento do ato, pois que o princípio constitucional da independência dos poderes veda tal manifestação judicial, nos termos do artigo 9º do decreto em questão.
E nos relembra Arnoldo Wald, assim, que o Poder Judiciário só poderá examinar, conforme a legislação especial, se a indenização corresponde ou não ao valor real do bem desapropriado, por conta da competência discricionária que tem o Poder Executivo nesta matéria (Direito das Coisas, vol. III, ed. RT, 1993, p. 170).
Ainda de conformidade com o Fioranelli, no âmbito do registro de imóveis, o oficial registrador poderá cancelar de ofício o direito de usufruto existente à margem da matrícula do imóvel, no exato momento que passa a registrar a nova propriedade em favor do poder expropriante.
Como regra, a iniciativa do oficial é regrada pela Lei de Registros Públicos e, de conformidade com o artigo 250 da mencionada legislação, o cancelamento de averbações, registros ou matrículas deverá ser promovida pelos interessados, mediante sentença definitiva ou documento hábil ou a requerimento unânime das partes.
Entretanto, em se tratando de desapropriação de bem imóvel com base no interesse público, a aquisição do ente expropriante o será de forma originária. Em verdade, a desapropriação é forma típica de aquisição originária da propriedade, não guardando qualquer vínculo com o antigo proprietário e com os eventuais gravames que estejam averbados na matrícula do imóvel.
Como observam Chaves e Rosenvald, “é indiferente ao Poder Público quem seja o proprietário ou se existe eventual limitação voluntária à transmissão da propriedade (v.g. cláusula de inalienabilidade)” (Direitos Reais, 4ª ed., Lumen Juris, 2007, p. 329). Não se cogita, assim, de qualquer relação jurídica de transmissão, sendo, em verdade, forma originária de aquisição e perda da propriedade imobiliária ao mesmo tempo.
Por esta ótica, desaparecem todos os vínculos dominiais sobre o bem desapropriado e, juntamente com eles, os registros de direitos reais incidentes, como se dá no caso de usufruto. E exatamente por isso não há sequer necessidade de um comando judicial para cancelamento do usufruto sobre o bem desapropriado, sendo suficiente a decisão definitiva que obriga o novel registro em nome do ente expropriante.
Aliás, para comprovação de fatos claros e não complexos — como o término de um usufruto pela morte do usufrutuário, a título de exemplo — não se suscita a intervenção do judiciário, eis que não nos deparamos com fatos controversos ou que exijam maior dilargação comprobatória, impondo-se, destarte, a autonomia do oficial registrador para o ato de cancelamento do direito real na respectiva matrícula, mediante requerimento do interessado.
Insta destacar ainda, no contexto antes referido, que o direito de sequela (jus persequendi) — direito de reivindicar a coisa de quem quer que a detenha, característica maior dos direitos reais — não se verifica em caso de desapropriação de bens imóveis, exatamente por se tratar de forma originária de aquisição. É sabido que, pelo direito de sequela, o usufruto registrado continua pendente e bastante vivo em caso de alienação do imóvel pelo nu-proprietário, assim como na hipótese de sucessão hereditária.
Faz-se aqui, ainda, uma ressalva, quando se tratar de desapropriação indireta, posto não se tratar de aquisição originária de propriedade, mas de hipótese de restrição de uso da propriedade particular pela administração pública, consistente, assim, na realização de obras pelo poder público ou sua destinação em função de sua utilidade pública ou interesse social.
Na verdade, na desapropriação indireta o poder público toma posse do bem, num primeiro momento, e somente depois discute-se o valor do bem pelo ato consumado.
Certo que a jurisprudência é uníssona em reconhecer a ação de desapropriação indireta como ação indenizatória, de natureza real e com prescrição vintenária, nos termos tratados pela Súmula 119 do STJ.
Muito embora o artigo 1.409 do Código digo Civil preveja que a indenização paga ficará subrrogada no ônus do usufruto, caso o imóvel seja desapropriado, entende-se que o usufrutuário haverá de exercer de fato o pleno gozo da administração do bem, a fim de que seja efetivamente contemplado.
Isso não impede que o usufrutuário transfira seu exercício de posse a terceiros, como na locação ou arrendamento, eis que, pela sistemática do Código (1.393 e 1.399 CC), admite-se a cessão do exercício do usufruto a terceiros, seja de forma gratuita (comodato) ou onerosa (locação).
E também não é demais afirmar que, no ato constitutivo do usufruto, não se poderá proibir a cessão do direito do usufrutuário, até porque o conteúdo dos direitos reais é definido por lei, independente da vontade do instituidor (Venosa, ob. cit., p. 359).
Já a transferência por alienação do usufruto não se admite, nem mesmo em relação ao nu-proprietário, até porque o usufruto é um direito real tido como inalienável (1.393 CC). Em caso de extinção do usufruto, diz-se que a propriedade será consolidada em favor do nu-proprietário.
É cediço, pois, que o usufrutuário, por força do entendimento do artigo 1.394 do Código Civil, tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos, não lhe sendo facultado, como esperado, alterar a substância do bem, modificando a forma da coisa usufruída.
A desapropriação indireta, de fato, atinge exatamente aquele que usufrui do bem imóvel, de forma concreta e incisiva, e indiretamente o nu-proprietário. Ou seja, o efetivo prejuízo se concretiza em relação a quem tem a posse do todo, mas, pela intervenção da administração pública (entenda-se os entes federados, os concessionários, as entidades públicas e autorizatárias, nos moldes da legislação especial) ele passa a sofrer restrições no uso.
Neste quadro delineado, não fará jus à indenização o usufrutuário que não exercer posse sobre o bem ou quando não extrair qualquer valor econômico dele derivado. Aliás, o próprio artigo 1.410, VIII, do CC, prevê que “extingue-se o usufruto pelo não uso, ou não fruição, da coisa em que o usufruto recai“.
Destarte, sendo gravado de usufruto determinado bem imóvel, e não se verificando qualquer uso ou fruição pelo beneficiário, é de se concluir que este não se subrrogará no direito indenizatório fixado, quando restar devidamente comprovada a inexistência do uso ou fruição econômica do bem imóvel, ainda que não tenha havido cancelamento do direito real pelas vias ordinárias (artigo 1.410, VIII, CC).
Mas afora esta improvável hipótese, fica resguardado o direito à subrrogação do usufrutuário quanto à indenização devida pela desapropriação, seja ela indireta ou não.
De qualquer maneira, para que se aclare o direito indenizatório devido ao usufrutuário pelo ato de desapropriação, importante, antes, que se apure se o usufruto constituído é da modalidade simples (ou altruística) — sem o exercício de uma atividade econômica geradora de rendas — ou de resultado econômico, ou seja, aquele que gera efetivos rendimentos pela cessão do exercício, como na locação.
Essa diferenciação tem importância no momento da fixação do quantum indenizatório, a fim de que esta subrrogação do direito do usufruto se opere da maneira mais acertada possível no âmbito do processo judicial de desapropriação, sem gerar prejuízos visíveis no exercício do direito do usufrutuário.
De outra banda, não se confunde o usufruto simples com o direito real de uso, pois neste o usuário não possui a faculdade do ius fruendi, mas tão somente de utilizar a coisa alheia para si e sua família (artigo 1.142). Em verdade, o direito real de uso mais se caracteriza como uma cópia minimizada e enfraquecida do usufruto, seja em relação ao ius utendi e ao ius fruendi.
Caso o usufrutuário tenha cedido o seu exercício a terceiros, de forma onerosa, mediante locação ou por meio de outro negócio jurídico, necessário que reste apurada a expectativa do resultado econômico que envolva a mencionada cessão.
Na hipótese, entendemos que o montante ressarcitório destinado ao usufrutuário deverá contemplar o resultado de sua expectativa contratual real, com todos os contornos jurídicos existentes.
Não se cuidando de cessão do exercício do usufruto a terceiros — ou mesmo que se trate de cessão gratuita — a indenização ao usufrutuário tomará feições diversas, de conformidade com a modalidade estabelecida no ato de sua constituição.
Assim, no usufruto vitalício — o qual, pelas palavras de Maria Helena Diniz é “aquele que perdura até a morte do usufrutuário ou enquanto não sobrevier causa legal extintiva” (Manual de Direito Civil, Ed. Saraiva, 2011, p. 378) — a ruptura do direito real por desapropriação poderá gerar direito indenizatório ao usufrutuário em quantitativo diferente ao destinado ao nu-proprietário, apurado pela expectativa de vida daquele beneficiado, associado ao quantum que teria que despender para exercer o direito em outro bem imóvel.
Correto que tais questões melhor se solveriam por meio de adequada perícia, se a complexidade do caso assim suscitar. Fato é que, no feito que julga a desapropriação, haverá importância de se fazer menção não somente à existência do direito real de usufruto, mas também à sua forma de exercício, para que se possa emitir um critério indenizatório apropriado com a realidade dos fatos.
De novo, caso haja informação de cessão do exercício do usufruto a terceiros, de forma onerosa, o valor pactuado neste negócio jurídico deverá ser considerado para calibrar o quantum indenizatório devido ao usufrutuário.
Em se cuidando de usufruto onde não se estabeleça cessão do seu exercício, não será o negócio jurídico a base central para o direito de subrrogaçao do usufrutuário, mas sim o reflexo econômico da modalidade do usufruto em questão — seja ele vitalício ou mediante prazo ou condição fixados — o qual deverá ser referida da decisão judicial, ainda que levada a efeito no momento da execução do julgado.
Nos lembra Orlando Gomes que a função precípua do usufruto é assegurar a certas pessoas os meios de subsistência, de forma gratuita e com finalidade alimentar, constituindo-se em entrave à circulação da riqueza (Direitos Reais, ed. Forense, 2009, p. 334).
Entretanto, nem por isso se poderá deixar de averiguar o reflexo econômico deste direito real, quando afetado por meio de desapropriação, exatamente a fim de se preservar e restabelecer a intenção inicial da destinação do direito ao verdadeiro beneficiário.
Furtar-se a esse exame seria o mesmo que relegar exclusivamente ao nu-proprietário a competência para examinar e decidir o direito indenizatório do usufrutuário — ainda que seja indubitável seu direito à subrrogação, como disposto no artigo 1.409 de nossa codificação civil.
Nota-se, neste particular, que a legitimidade processual do usufrutuário para integrar a lide desapropriatória já vem sendo afirmada pela nossa jurisprudência, da forma como o Tribunal de Justiça de São Paulo já delineou: “Não se pode olvidar de que o usufrutuário que se encontra no uso e fruto do bem se subrrogará no preço ou direito sobre a coisa expropriada, de sorte que resta hígida a sua legitimidade como parte ativa desta ação de desapropriação indireta, até porque eventual indenização trará a ele, o usufrutuário, direito aos frutos decorrentes de vantagens econômicas (TJ-SP, Ap. Cível nº 0019670-16.2009.8.26.0032, relator: Reouças de Carvalho)”.
De igual prisma assentou o Tribunal Regional Federal 3ª Região acerca do tema: “Com efeito, o C. STJ tem consolidada orientação jurisprudencial no sentido de que os usufrutuários são sim parte legítima para defender os imóveis sobre os quais exercem o usufruto, tendo em vista que o usufruto corresponde a um direito real por excelência (AgRg no REsp n. 1.291.197/MG, rel. min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 12/5/2015, DJe de 19/5/2015) (TRF-3, Ap./Remessa Necessária nº 0025782-55.1998.4.03.6112, Vice-Presidência, p. 11/04/2010).
Como se denota, a participação do usufrutuário na lide expropriatória traz importância ímpar para que fique delimitada sua fração subrrogada.
De fato, nos termos do Decreto-lei 3.365/41, se o desapropriado não aceitar o valor fixado pelo poder expropriante, o juízo competente determinará a realização de respectiva perícia, com nomeação do expert, para que reste definido o real valor do bem, o qual deverá se convolará em justa indenização.
Ressalta-se aqui que o desapropriado, em casos de existência de usufruto, não será apenas a figura do nu-proprietário, estendendo-se, igualmente, àquele que tem o exercício da administração, ou seja, ao usufrutuário, que poderá intervir sobre o preço, postulando assistência pericial, se for o caso, ao lado do titular, ou mesmo por mote próprio, cuidando-se, em verdade, de um litisconsórcio necessário.
Evidentemente que estamos diante de um quadro jurídico complexo, em que seria recomendável ao aplicador da lei estabelecer os parâmetros gerais em sua decisão final, a fim de que, no momento da execução do julgado, sejam realizados os cálculos e pormenores imprescindíveis à efetivação e concretude da sentença.
A reforçar, ainda, que o direito real ora tratado — usufruto pendente sobre bem desapropriado — haverá de ser trazido a lume, para a devida apreciação judicial, via de regra, pela parte interessada, ou por impulso oficial, quando for possível deduzir claramente pela documentação registral constante dos respectivos autos.
Fonte: ConJur