Orgulho da prisão – desagravo histórico de Fábio Trad a advogado preso por cu
Campo Grande (MS) – A defesa das prerrogativas do advogado tem sido uma das principais marcas da administração do presidente Fábio Trad desde que iniciou sua gestão na Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul em janeiro do ano passado, e um dos motivos que fizeram com que a advocacia estadual lhe conferisse a aprovação superior a 80% à sua gestão, conforme pesquisa do Instituto Tendência divulgada nesta semana, uma popularidade nunca antes alcançada na história da OAB-MS. O que pouca gente sabe entretanto é que essa quase que obsessão em defender as prerrogativas dos advogados tem sido uma característica marcante na trajetória jurídica do atual presidente bem antes mesmo de sua gestão. Neste mês, completa cinco anos um discurso histórico feito no dia 12 de dezembro de 2003 pelo então conselheiro seccional Fábio Trad, em sessão do Conselho, em desagravo ao advogado Abadio Marques Rezende que havia sido preso por cumprir seu papel de defender um cliente, por determinação da então senadora Patrícia Saboya (CE) e da deputada federal Laura Carneiro (RJ) da chamada CPI da Prostituição Infantil.
Veja a íntegra do discurso:
DESAGRAVO AO COLEGA ADVOGADO ABADIO MARQUES REZENDE
(Fábio Trad – advogado e conselheiro estadual da OAB-MS – dezembro de 2003)
Exmo. Sr. Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso do Sul Dr.Vladimir Rossi Lourenço
Senhoras Conselheiras e Senhores Conselheiros
Advogadas e Advogados presentes
Senhoras e Senhores :
Diz a sabedoria popular que roupa suja se lava em casa, até porque não convém que outros, desconhecidos e estranhos, tomem conhecimento de certos problemas íntimos e por isso mesmo publicamente inconfessáveis.
Hoje, porém, os advogados do estado de Mato Grosso do Sul nos reunimos para lavar roupa suja dentro de nossa própria casa, fazendo questão de que todo o Brasil veja não só a roupa, mas a sujeira que dela emana e sobretudo o profissional que, por via indireta, está sendo higienizado.
Lava-se a beca da defesa, manchada pelo arbítrio que vitimou um dos nossos, porque ousou simplesmente advogar. Lavamos nós, advogados, com o único instrumento de que dispomos, a palavra.
Um dos nossos foi preso. Preso, não. Preso e humilhado. Preso, humilhado e objeto de escárnio público, às vistas da nação, porque os leigos, que são maioria, ignorantes do que se passava, captaram apenas a caricatura simbólica do espetáculo encenado.
Uma cena assaz simpática: uma bela e frágil mulher, responsável por caçar malvados bruxos que seduzem ingênuas donzelas, manda prender um homem de terno e gravata, um colarinho-branco arrogante que esbravejava em favor de uma desconhecida personagem do grande público, nunca antes encenada nos programas de TV, a que ele, insistente, chamava pelo nome de DEFESA.
Afinal quem é ela, essa tal DEFESA, por quem esse homem de gravata tanto lutava, que nunca foi chamada para cantar nos programas de TV e que nunca apareceu mais gorda nas revistas de moda ?
Agora, sim, a justiça está sendo feita. Viva a senadora, a mulher corajosa que prendeu um desconhecido lá do pantanal, terra de índio que não sabe o seu lugar. Bem feito prá ele! Quanta petulância! Olha! Ele está protegendo um sujeito chamado RÉU (que nome estranho !) que, por sua vez, se recusa a responder a elas, dizendo que só responde para um homem chamado JUÍZO (que nome estranho!). Veja, ele está reclamando só porque ela chamou o seu protegido de MENTIROSO. Prenda-o. Algemem, amarrem, empurrem, humilhem. Tirem-no do palco. Ele só atrapalha o espetáculo ! O show precisa continuar. Retirem este homem que só sabe gritar por essa artista que não dá ibope, essa tal de DEFESA. Isso. Assim. Isso é que é autoridade. Uma xerife mulher. Isso é que é mulher de fibra. Vou até anotar o nome dela porque, quem sabe, pode ser candidata a presidenta: Patrícia Sabóia, a mulher que prendeu um homem que protegia um outro que não queria falar.
Senhoras advogadas e Senhores advogados :
Temos, para além do título de bacharel em Direito, uma luz que nos iguala e ao mesmo tempo nos distingue perante os outros. Não somos apenas bacharéis em Direito; nós somos ADVOGADOS. Não somos apenas juristas; somos ADVOGADOS. Não somos apenas operadores do Direito; somos ADVOGADOS.
Advogados que somos, e, jamais deixaremos de ser; morreremos advogados e seremos lembrados como ADVOGADOS. Isto é, somos LIVRES. Somos quem quisermos SER. Somos o orgulho da LIBERDADE, somos a esperança da DEMOCRACIA, somos a chama da JUSTIÇA.
Nós somos Rui Barbosa ! Nós somos Evandro Lins e Silva ! Nós somos Sobral Pinto, Tobias Barreto, Heleno Fragoso ! Nós somos a PALAVRA que não se cala; a voz dos que estão mudos. Já fomos o anteparo das guilhotinas; a mão que desatou forcas. Nós somos únicos, e, por isso somos temidos. O temor que inspiramos não nos orgulha; o que, de fato, nos orgulha é saber quem nos teme. Temem-nos os que odeiam a luz, porque se alimentam do escuro; os que não bebem água; porque sorvem sangue; os que contaminam a palavra, porque adoecidos pela mentira; os que fingem ouvir, porque surdos de si mesmos.
A ditadura não nos tolera. A democracia não vive sem nós. O monólogo nos repudia; somos filhos da dialética. Nós somos o NÃO no país que cultiva a subserviência do SIM, senhor. Quando as massas urram, sedentas de ira e vingança, clamando pela justiça sumária, recai sobre nós a missão de resistir e pacificar, visando a contenção dos ímpetos e a racionalização das paixões?
Somos únicos, afinal o que restaria da majestade da toga se não fosse a audácia da beca ?
Naquela tarde em que um dos nossos foi preso, o Brasil assistiu a um espetáculo que reproduziu, em leitura psicanalítica, os estigmas que nos assolam enquanto nação. A cultura autoritária do coronelato nordestino, encarnou-a a senadora pelo Ceará, quando calou a nossa voz, algemando a defesa. O preconceito racista que nega ao NEGRO o gozo dos direitos do BRANCO foi assumido pela elite carioca na representação espetacular da parlamentar Laura Carneiro, tão alva de pele quanto democrática no gesto, ao chamar de mentiroso um acusado negro que exercia o direito constitucional ao silêncio. O complexo feminista de inspiração totalitária que se transfundiu em espasmo revoltoso contra o histórico poder masculinizado encontrou campo fértil nos aplausos de senadoras que, sob as luzes dos refletores nacionais, calcularam que, com a prisão de um homem, ainda por cima engravatado, projetariam a condição feminina ao planalto do poder, quando, em verdade, conseguiram a proeza de rebaixá-la ao sub-mundo do mais estúpido machismo às avessas porque é preferível prender advogados no planalto do poder, do que fiscalizar poderosos que estão no poder do planalto.
Por isso, lavamos a beca, tinta de arbítrio, em nossa própria casa. E não o fazemos com ódio, nem rancor; pois lembrem-se, nós, os advogados não temos ódio, porque somos livres.
Lavamos a beca de um inocente útil que foi alçado, pela conjunção de circunstâncias, à condição de VÍTIMA de uma covardia inominável.
É dever de ofício dos advogados perdoar sempre; vingar jamais.
Por isso, as flores desta Casa amolecem espinhos. As pedras que nos jogam os detratores da advocacia, nós as recolhemos e com elas fazemos pontes, porque nós somos a ligação da Justiça com o Povo. Os braços dos asseclas que agarraram um dos nossos como se fosse um marginal em plena prática de crime de sangue serão os mesmos braços que, um dia, precisarão de socorro jurídico, e, encontrarão nos braços dos advogados, e não dos senadores, o único suporte a se apoiar como tábua de salvação de seu direito à defesa, o mesmo direito que ajudaram a solapar em obediência a ordem manifestamente ilegal.
Pois que venham os maledicentes a imprecarem suas injúrias contra nós, porque eles, no final das contas, serão processados e, pasmem, defendidos por um de nós. Nós advogados somos um ciclo sem fim. Abre-se em torno de nós; fecha-se em nós mesmos.
Advogado, nós lhe pedimos: não se envergonhe desta prisão que te fez réu. Antes, deve você, advogado, dar de presente a sua biografia o fato de ser preso acusado de defender a liberdade. Você, advogado, deve olhar nos olhos dos seus filhos e dizer a eles que tem orgulho de ter sido preso porque diante do medo, você foi coragem; diante do escuro, foi luz; diante do opróbrio, foi dignidade e diante do silêncio, foi música.
Presos com você, fomos nós. Fomos todos os advogados independentes e destemidos.
No céu, advogado, onde se hospedam os espíritos de luz, ungidos pelo bálsamo refrescante do azul etéreo, naquele momento em que foi carregado à força, e humilhado, e vilipendiado, e enxovalhado e aviltado perante o país, o seu desespero, advogado, alertou os nossos santos. Pois você orou. E, na oração que fez na sala em que te submeteram ao silêncio forçado, você viu a cena: Sobral e Evandro, em túnicas brancas, foram reclamar a Deus, que onipotente, dispensou-lhes o trabalho de defesa, e, de plano, já lhes deu razão, afinal, lá no céu, temos assento na ala superior dos santos, pois temos um advogado eterno que zela por nós – Santo Ivo – e que certamente sussurou aos anjos que abençoassem as lágrimas que derramou no prenúncio do sono que não teve o direito de ter naquela noite que assistiu, constrangida, a prisão de uma liberdade, uma liberdade chamada ABADIO MARQUES DE REZENDE.
E a chuva que caiu naquela noite, lavou, no âmbito do espírito, as maldades que lhe fizeram. Chuva de águas abençoadas que trouxeram mansuetude ao inconformismo de seus colegas, como Othon Nasser e Geraldo Escobar, soldados da tua luta, valentes na solidariedade que emprestaram a sua dor. De mãos dadas com o teu drama, narrando em primeira pessoa, porque atingido no peito, que sangrou, estava também, eu vi, o seu colega Vladimir Rossi Lourenço, esbravejando, transtornado, em transe de ira sagrada, daquela que só conhecem os líderes comprometidos com a causa dos seus liderados, disparando o seu verbo para o Conselho Federal, no que contou com o desprendimento moral de José Sebastião Espíndola, este colega indômito e essencial. Porque é importante que saiba, advogado, que, pela anatomia moral dos integrantes deste conselho, na verdade, todos os conselheiros com assento neste colegiado devotariam a você os préstimos que a gravidade da situação reclamava.
Hoje, dia 12 de dezembro de 2003, os seus colegas estamos aqui para lhe dizer:
ABADIO, TEMOS ORGULHO DA SUA PRISÃO.
ELA NOS FEZ VER O QUANTO SOMOS FORTES.
ELA NOS FEZ VER O QUANTO SOMOS TEMIDOS.
OBRIGADO, ABADIO, POR SUA PRISÃO, PORQUE ELA NÃO FECHOU AS PORTAS APENAS PARA A LIBERDADE; ELA ESCANCAROU A FRAQUEZA DOS PODEROSOS DIANTE DE NOSSA PALAVRA. E VOCÊ FOI O AGENTE QUE POSSIBILITOU A MÁGICA DE TRANSFORMAR UMA SENADORA EM FANTOCHE DA PRÓPRIA TRAGÉDIA, E, AO MESMO TEMPO, ELEVAR A BECA AO CUME DA MONTANHA, ONDE AO SOPRO DO VENTO DA LIBERDADE, SERÁ HASTEADA COMO A BANDEIRA MAIOR DA DEFESA DA LIBERDADE E DA JUSTIÇA.
VIVA A BECA DE ABADIO MARQUES DE REZENDE!