POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÕES EM MATÉRIAS SUBTRAÍDAS AO PODER REFORMADOR

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Luciano Furtado Loubet Bacharel em Direito ([email protected]) INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é tentar apresentar uma alternativa de maior perpetuação da Constituição de 1988, caso sejam clamadas pela população modificações que, em virtude do art. 69, § 4º, estejam excluídas da competência do Poder Constituinte derivado. Trata-se de hipótese remota, e de formulação ainda embrionária, necessitando, assim, de amplas discussões para que possa ser utilizada. ESPÉCIES DE CONSTITUIÇÃO As Constituições podem ser qualificadas, dentre outras classificações, quanto à origem, à forma e à mutabilidade. Porém para os objetivos deste estudo, faz-se somente necessária a análise da classificação quanto à mutabilidade. Quanto à mutabilidade dividem-se em: imutáveis, fixas, flexíveis, semi-rígidas e rígidas. Cartas imutáveis eram aquelas utilizadas nos Estados Teocráticos, em que a lei superior era vontade de Deus, e não poderiam ser modificadas, sob pena de sua ira. Classificam-se como fixas as que não podem ser modificadas pelo Poder Constituinte derivado, ou seja, não admitem reformas. As rígidas seriam aquelas cuja reforma necessitaria de um processo legislativo mais rigoroso. São flexíveis as Constituições que, para serem alteradas, utilizam o mesmo processo legislativo e são modificáveis por qualquer lei superveniente. As semi-rígidas, são as que têm parte rígida e parte flexível. A despeito de praticamente todos os tratadistas do Direito Constitucional no Brasil, dentre eles Michel Themer (p. 29) e Sahid Maluf (p. 210), classificarem a Constituição Federal de 1988 como rígida, entendemos que, dentro da classificação apresentada, ela melhor se enquadra como parte rígida – pois necessita de processo legislativo mais rigoroso para ser modificada–, e parte fixa – pois existem preceitos que não admitem alteração pelo Poder Constituinte derivado. SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO As Cartas Políticas rígidas destacam-se por serem hierarquicamente superiores às demais leis de um país. Esta é a lição do professor José Afonso da Silva: “A rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para sua modificação do que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da rigidez emana, como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição…” (p. 44) A supremacia constitucional dá base à sustentação de todo o sistema normativo vigente em um país, pois todas as normas retiram a sua validade, direta ou indiretamente, do Texto Constitucional, e, caso estejam em contrariedade, não têm força de validade e nada vinculam. DO PODER CONSTITUINTE A) PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO Poder Constituinte originário é aquele que constitui uma nova ordem jurídica; juridicamente, a cada advento de uma Constituição nasce um novo Estado. Esta é a lição de Michel Temer: “(O poder constituinte originário) Visa a criar o Estado. Antes dessa manifestação, o Estado, tal como veio a ser positivado, não existia. Existe, é, a partir da Constituição. … Historicamente é o mesmo. Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é, porém, juridicamente.” (p. 35) O Poder Constituinte originário não tem limitações jurídicas, ele cria a nova ordem, e não é limitado por qualquer outra lei anterior. As eventuais restrições que possa sofrer decorrem de pressões políticas ou ideológicas, mas nunca jurídicas. A doutrina o classifica como – inicial, autônomo e ilimitado. Outra característica essencial desse poder, é que ele permanece latente, ou seja, está sempre presente nas mãos dos componentes da sociedade, e pode ser invocado quando tornar-se necessário. B) PODER CONSTITUINTE DERIVADO Poder Constituinte derivado, também conhecido como Poder Reformador ou de competência reformadora, é aquele exercido pelas casas legislativas mediante competência delegada pelo poder originário para proceder à reforma do texto constitucional. Este poder é constituído e limitado, na forma como lhe foi outorgada a competência reformadora. Na Constituição Brasileira, os limites da competência reformadora são procedimentais (art. 60), circunstanciais (art. 60, § 1º) e materiais (art. 60, § 4º). AS “CLÁUSULAS PÉTREAS” As denominadas “cláusulas pétreas” são as limitações materiais impostas pelo poder constituinte originário ao derivado. Portanto, não poderão ser objeto de reforma constitucional (art. 60, §4º): a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. Destas limitações expressas decorrem outras implícitas, como por exemplo a supressão do artigo 60 que prevê rito legislativo especial para reforma, ou a redução das competências conferidas aos Estados-membros, pois contrariaria o princípio federativo. PRINCÍPIO DA AUTO-PERPETUAÇÃO CONSTITUCIONAL Pode-se afirmar que existe na Constituição um princípio implícito de auto-perpetuação. Toda Constituição pretende perpetuar-se no tempo, e para isso, necessita de mecanismos. Uma das formas de não ficar obsoleta é a própria reforma constitucional, que permite modificações em preceitos para a melhor adequação aos anseios da sociedade. O constitucionalista Michel Temer evidencia esta característica: “As Constituições se pretendem eternas, mas não imodificáveis. Daí a competência atribuída a um dos órgãos do poder para a modificação constitucional, com vistas a adaptar preceitos da ordem jurídica a novas realidades fáticas.” (p. 37) Sendo assim, está efetivamente evidenciado que a própria Constituição pretendeu permanecer o maior tempo possível em vigor, sendo que desta vontade de perpetuação decorre a necessidade de alterações em seu texto, pois, caso contrário, correr-se-ia o risco de normas jurídicas secundárias obstarem o progresso das relações sociais e, não havendo a possibilidade de sua alteração, ser necessária a elaboração de uma nova ordem constitucional. NORMA JURÍDICA A norma jurídica, no dizer de Paulo de Barros Carvalho, “é a significação que colhemos da leitura dos textos do direito positivo” (p. 7). Portanto, não se identifica diretamente com o texto normativo, podendo uma norma estar diluída em vários artigos e incisos, ou em um mesmo artigo, serem encontradas mais de uma. O professor Clélio Chiesa, ensina a respeito, o seguinte: “A norma jurídica pode estar fragmentada em mais de um texto de lei, em vários artigos, parágrafos, incisos, alíneas, enfim, diluída nos textos do direito positivo.” (p. 23) A norma jurídica pode ser subdividida em regras e princípios jurídicos. REGRAS JURÍDICAS As regras jurídicas são normas jurídicas de amplitude localizada, que regulam casos específicos, sem muita abrangência. Podemos citar como exemplos de regras jurídicas constitucionais os arts. 18, § 1º e 87, parágrafo único, III: “art. 18. … § 1º – Brasília é a Capital Federal.” “Art. 87. … Parágrafo Único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei: III – apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério;” É óbvio que o campo de abrangência destas normas é muito inferior ao do art. 5º, II, que dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Assim, as regras jurídicas, apesar de não serem hierarquicamente inferiores aos princípios, exercem papel muito menos relevante dentro do ordenamento jurídico. PRINCÍPIOS JURÍDICOS Princípio jurídico, no ministério de Roque Antônio Carrraza, pode ser classificado como: “um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isto mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam” (p. 25/26) No exemplo clássico formulado por Geraldo Ataliba e Celso Antônio Bandeira de Mello, colacionado por Roque Carrazza (p. 25), podemos fazer uma comparação do sistema jurídico com um edifício, em que o alicerce e as vigas mestras seriam os princípios, e as portas, janelas, adornos, seriam as regras jurídicas. Se retirarmos estas “portas”, “janelas” e “adornos”, nenhum abalo profundo será sentido na estrutura do edifício, mas, se acaso forem retirados o alicerce e as vigas mestras, certamente tudo ruirá. Percebe-se portanto a importância fundamental da existência dos princípios, pois além de terem uma abrangência extrema, vinculam e ordenam a interpretação das demais normas jurídicas. O PRINCÍPIO DA SOBERANIA POPULAR A Constituição em seu art. 1º, parágrafo único, estabeleceu o princípio da soberania popular. Verbis: “Art. 1º. … … Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.” Além desta norma existem outras passagens no texto que autorizam o povo a participar diretamente das decisões do país, como por exemplo a iniciativa popular das leis (art. 61, § 2º e art. 14, III), o plebiscito e o referendo (art. 49, XV e art. 14, I e II). Portanto, é legítima e necessária a participação direta da população nas decisões mais importantes da nação, que poderá fazê-lo mediante estes instrumentos apontados. A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÕES EM MATÉRIAS PRESERVADAS PELAS “CLÁUSULAS PÉTREAS” Conforme já salientamos, existem matérias que são subtraídas do Poder Constituinte derivado (art. 60, § 4º), sobre as quais é vedado fazer alterações que restrinjam ou subtraiam sua aplicabilidade. Geralmente os autores, ao se depararem com este tema, estabelecem que somente com uma nova ordem constitucional é que se poderia fazer qualquer restrição àquelas matérias, seja por ato revolucionário, seja pela convocação de uma nova Assembléia Nacional Constituinte. Porém, como já dito, é a própria Constituição que demonstra a intenção de perpetuar-se no tempo, tanto que estabeleceu um Poder Reformador que, por delegação, investe-se de Poder Constituinte, a fim de que seu texto seja alterado de acordo com as novas aspirações sociais. Esta é a maior prova de que o objetivo principal da Constituição é criar um Estado com características próprias, mediante princípios gerais que devem ser obedecidos, mas que não fique adstrito às mesmas regras jurídicas (normas de abrangência restrita) ao longo do tempo. O Poder Constituinte originário previu a necessidade de alteração e fixou mecanismos para tanto, de sorte a atingir um fim maior, qual seja: a perpetuação da ordem constitucional. Isto porque não é recomendável que a cada necessidade de alteração seja criado um novo Estado, mesmo que apenas juridicamente. Outra característica já apontada do Poder Constituinte originário, é que ele permanece latente nas mãos da população, e pode ser posto em movimento sempre que as exigências necessitarem. Por último, ficou demonstrado que o princípio da soberania popular foi expressamente consagrado pela Carta Magna, ressaltando a possibilidade de participação direta do povo nas decisões nacionais. Portanto, aliando-se o princípio da soberania popular, com o da perpetuação da ordem constitucional, e tendo-se a idéia de que o Poder Constituinte originário permanece latente à espera de ser provocado, pode-se afirmar que, mediante um processo de participação direta da população, e sem a quebra da ordem vigente, seria possível a alteração de algumas matérias subtraídas do Poder Reformador, previstas no art. 60,§ 4º. Isto ocorre em virtude da desnecessidade do advento de uma revolução ou de nova Assembléia Constituinte apenas para a alteração de regras específicas que não podem ser modificadas pelo Poder Reformador, pois isto sim iria de encontro com a própria vontade constitucional de protrair-se no tempo mesmo que com algumas alterações localizadas e restritas em seu texto. Note-se que esta é uma situação remota, que concretizar-se-ia quando a maioria da população clamasse pela alteração de alguma matéria específica que o constituinte derivado por ventura não tivesse legitimidade para fazê-lo. A hipótese da força popular legitimar o Poder Reformador já foi apontada por Celso Ribeiro Bastos, ao sustentar a possibilidade de uma nova reforma constitucional com fundamento no art. 3º do ADCT, já que o Constituinte Derivado, isoladamente, não teria força para tanto. É o que se pode verificar da seguinte lição: “Cremos que a votação positiva, pela maioria dos eleitores brasileiros, supre a ausência de força para tanto, por parte do Poder Reformador isoladamente. Na verdade, passa este a tornar-se investido da força popular que é a que legitima o próprio Poder Constituinte originário.” De qualquer forma, somente por iniciativa popular é que poderia ser iniciada esta alteração nos moldes do art. 61, § 2º, devendo, entretanto, ser exigida a adesão de mais da metade da população, haja vista que com este percentual estaria presente a verdadeira vontade do Poder Constituinte originário, representada pela maioria do eleitorado. Percebe-se claramente, repita-se, que se trata de uma hipótese remota, pois atingir-se a maioria de intenção sobre qualquer assunto é tarefa assaz difícil. Ressalte-se que para sustentar-se esta possibilidade de iniciativa popular para emenda à Constituição, fez-se uma interpretação extensiva do art. 60 conjugando-o com o art. 61, § 2º, possibilitando, assim, a iniciativa de emenda por participação popular. Poderia também ser utilizado o instituto do plebiscito (consulta prévia da população sobre determinado assunto), que também deveria ter maioria absoluta do eleitorado. Exclui-se a utilização do referendo (consulta posterior sobre matéria já votada), pois neste caso a emenda já estaria comprometida pelo vício da inconstitucionalidade desde o início, tendo em vista que no caso de emenda constitucional que contrarie as cláusulas pétreas, o controle de constitucionalidade pode obstar até mesmo a deliberação do projeto. O procedimento legislativo a ser adotado é o da emenda à Constituição (art. 60), porém, neste caso, o Congresso Nacional já estaria investido na condição de Poder Constituinte originário. Exemplo de regras que poderiam ser modificadas por este procedimento é a atinente à instituição do júri (art. 5º, XXXVIII), que é um direito individual, e portanto fora da competência do poder reformador, ou a instituição da prisão perpétua (art. 5º, XLVII, b). IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÕES DE PRINCÍPIOS Já foi salientada a diferenciação entre regras e princípios jurídicos, sendo que os últimos têm abrangência geral e dão sustentação ao sistema jurídico, além de vincular a interpretação das demais normas. Assim, justamente por serem as normas/bases do ordenamento, não poderiam ser alterados da forma como foi proposta, pois, tendo eles abrangência geral, acarretaria sérias conseqüências a todo o sistema de leis vigentes no país. Caso fosse extirpado ou enfraquecido consideravelmente algum princípio constitucional, ocorreria a conseqüência prevista no exemplo formulado por Geraldo Ataliba e Celso Antônio: ruiria o edifício jurídico nacional. Portanto, somente rompendo-se com a atual ordem constitucional é que poderia ser excluído ou alterado um princípio como o da federação, da igualdade ou da legalidade. A hipótese formulada neste estudo, restringe-se somente às regras jurídicas que têm abrangência restrita. O ordenamento jurídico pode ser comparado a um ecossistema, em que tudo funciona em perfeito equilíbrio, sendo que qualquer alteração na ordem das coisas acarreta uma reação em cadeia que pode tomar proporções inimagináveis. Sabendo-se desta condição de equilíbrio existente no sistema, deve-se fazer da mesma forma como deveria acontecer com atuações humanas na natureza, um estudo de “impacto ambiental” prévio, para se avaliar quais os efeitos que aquela alteração na Constituição acarretaria no próprio texto e nas leis infraconstitucionais. Qualquer alteração deste nível deve ser precedida de ampla discussão para que se possa tentar prever os efeitos secundários que acarretarão estas mudanças, analisando se tal alteração não será tão abrangente ao ponto de romper com a ordem constitucional vigente, caso em que será necessária a elaboração de uma nova Assembléia Nacional Constituinte. CONCLUSÃO Conclui-se das idéias aqui expostas, que não seria necessária a convocação de uma nova Assembléia Constituinte para a alteração de normas específicas que estão excluídas do Poder Reformador, por força do art. 60, § 4º. Ressalte-se, novamente, que qualquer alteração a ser realizada deverá ser amplamente discutida para avaliar-se a viabilidade jurídica, antes mesmo de se colocar o mecanismo de participação popular em movimento, pois somente uma apreciação abrangente poderia determinar se a alteração a se realizar poderia ser feita sem o rompimento da ordem vigente, ou, se haveria necessidade da instituição de uma nova ordem constitucional. Finalmente, a alternativa aqui proposta pode ser uma forma de preservação da Constituição Federal, caso a população clame por alguma alteração que se enquadre nos moldes expostos. Frise-se que a intenção deste artigo é apenas estimular a discussão da comunidade acadêmica sobre esta possibilidade, tratando-se de teoria ainda em fase de concepção. BIBLIOGRAFIA BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, Editora Malheiros, 4ª Edição; BASTOS, Celso Ribeiro, Revista Literária de Direito, artigo: Revisão Constitucional Só Mediante Plebiscito, Ano IV, nº 19 – set/out 97, p. 09. CARRAZZA, Roque Antônio, Curso de Direito Constitucional Tributário, Editora RT, 2ª Edição; CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, 4ª Edição; CHIESA, Clélio, ICMS Sistema Constitucional Tributário, Editora LTr, 1997; MALUF, Sahid, Teoria Geral do Estado, Editora Saraiva, 17ª Edição; SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora RT, 5ª Edição; TEMER, Michel, Elementos de Direito Constitucional, Editora RT, 6ª Edição.