SUJEITO PASSIVO DO IMPOSTO "CAUSA MORTIS" NOS CASOS DE FIDEICOMISSO

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Milena Inês Sivieri Pistori, advogada especialista em direito tributário. Didaticamente, podemos fazer uma “divisão” do Direito em vários “mundos”, com objetos próprios, e linguagens diversas, mas sabemos que o Direito é uno, incindível cientificamente. Assim afirmamos, porque neste breve estudo precisamos adentrar em outras searas do Direito que não apenas o Direito Tributário. É importante ressaltar que ao falar em direito positivo e a Ciência do Direito, primeiramente, mister que se questione se se trata de linguagens do direito num mesmo plano, ou em esferas jurídico-semânticas distintas. Antes mesmo de diferenciar esses institutos jurídicos, necessário conceituá-los. Direito positivo é a linguagem do direito que regula as condutas humanas, ordenando-as e organizando-as na sociedade, mediante regras jurídicas impostas no sistema. O direito positivo abarca somente normas jurídicas vigentes no ordenamento, as que ainda não se encontram nesta circunstância jurídica não compõem o conjunto de regras do direito positivado. Este, por sua vez, é aquele imposto à sociedade, dotado de eficácia jurídica. Ou seja, ocorrido o fato no mundo físico que o seu conceito se subsuma ao conceito da norma em abstrato, dá-se a incidência e a conseqüente juridicização do mesmo, passando este a ser fato jurídico, pois atingido pela incidência da norma respectiva. Já a Ciência do Direito é uma linguagem do direito que está acima daquela do direito positivo, isto é, serve-lhe de subsídio para a emanação das normas jurídicas que o compõem. É, pois, um ramo do direito que estuda as prescrições do direito positivado. Pode-se afirmar, então, que enquanto o direito positivo é uma linguagem prescritiva do direito, porquanto impõe condutas, ou o modo de serem realizadas, a Ciência do Direito é uma linguagem descritiva, pois apenas expõe, minuciosamente, como as regras jurídicas devem ingressar no sistema, e até mesmo depois de vigentes, como devem ser mantidas, controladas e cumpridas. A diferença reside na qualidade da atividade realizada por cada uma: enquanto no direito positivo a atividade é de regular condutas e comportamentos, na Ciência do Direito a atividade é de estudar as relações jurídicas advindas da imposição daquele, bem como o modo pelo qual as normas jurídicas devem ingressar no ordenamento. Ambos são inconfundíveis, integrados por dois corpos de linguagem, dois discursos linguísticos e, portanto, dissemelhantes. Enquanto o Direito positivo apresenta uma linguagem (construída pelo homem) que se forma e se expressa para disciplinar comportamentos humanos, nas suas relações interpessoais, a Ciência do Direito descreve o conjunto normativo então construído, dando-lhe ordem, hierarquizando-o e pondo à mostra seus entrelaçamentos unitário-sistemáticos com seus conteúdos de significação. Feita uma rápida passagem argumentativa, passemos à análise do instituto jurídico justaposto. O imposto “causa mortis” 1 é um tributo que incide sobre a transmissão de bens ou direitos em detrimento do ato de última vontade do “de cujus” com a sua morte. Ou, também, configura-se sobre a doação de bens ou direitos (ITCD – imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos). In casu, interessa-nos apenas o fenômeno da incidência que se dá nas transmissões de herança de bens e/ou direitos. A palavra sucessão, em sentido amplo, significa o ato pelo qual uma pessoa assume o lugar de outra, substituindo-a na titularidade de determinados bens. Numa compra e venda, por exemplo, o comprador sucede ao vendedor, adquirindo todos os direitos que a este pertenciam. Nesta hipótese, ocorre a sucessão inter vivos. No direito das sucessões, entretanto, o vocábulo é empregado em sentido estrito, para designar tão-somente a decorrente da morte de alguém, ou seja, a sucessão causa mortis. Esse ramo do direito pertine ao campo do direito privado, para fins de estudos – didaticamente -, pois que o Direito é uno e indivisível, daí a razão para analisarmos melhor, aqui, estes aspectos do direito civil. A existência da pessoa natural termina com a morte real (artigo 10, do Código Civil). Como não se concebe direito subjetivo sem titular, no mesmo instante em que aquela acontece abre-se a sucessão, transmitindo-se automaticamente o domínio e a posse da herança aos herdeiros legítimos e testamentários do de cujus (artigo 1.572, do Código Civil), sem solução de continuidade e ainda que estes ignorem o fato. Nisto consiste o princípio da saisine, segundo o qual o próprio defunto transmite ao sucessor o domínio e a posse da herança. Outra conseqüência do aludido princípio consiste em que o herdeiro que sobrevive ao de cujus, ainda que por um instante, herda os bens por este deixados e os transmite aos seus sucessores, se falecer em seguida. O fideicomisso é um instituto jurídico próprio das relações jurídicas abarcadas pelo campo do Direito das Sucessões. Há, em verdade, três sujeitos nesta relação jurídica fideicomissária: o fideicomitente (titular dos bens e/ou direitos a serem transmitidos através de herança ou legado), o fiduciário ou gravado (pessoa de confiança do fideicomitente, chamado a suceder em primeiro lugar) e o fideicomissário (adquirente dos bens e/ou direitos). Essa relação jurídica que se forma também é chamada de “substituição fideicomissária”. Trata-se de substituição, porquanto o titular dos bens e/ou direitos transmite-os a uma terceira pessoa que é diversa daquela que os recebe em primeiro plano. Ou seja, a substituição é a indicação de determinada pessoa para recolher a herança ou legado que não aquela que com este permanecerá. Instaura-se, em verdade, uma vocação dupla: direta para o legatário ou herdeiro instituído, o qual desfrutará do benefício por um certo lapso temporal estipulado pelo de cujus, e indireta, ou oblíqua, para o substituto. Observa-se, também, que é o fideicomitente quem fixa a duração do fideicomisso (por toda a vida do fiduciário, por certo tempo ou até que se verifique determinada condição resolutiva do direito deste). Tem-se, assim, três modalidades de fideicomisso: a) vitalício, em que a substituição ocorre com a morte do fiduciário; b) a termo, quando ocorre no momento prefixado pelo testador; e c) condicional, se depender do implemento de condição resolutiva. O substituto é o beneficiário, que tem relação jurídica indireta com o de cujus, porque recebe a herança ou legado em segundo plano. Esse instituto é utilizado para possibilitar a deixa testamentária a pessoas ainda não existentes, como a prole eventual. Esclarece-se, pois, que são duas relações jurídicas: a primeira na qual o fideicomitente transmite, temporária e condicionalmente, a herança ou legado ao fiduciário; e a segunda onde o fiduciário “transmite” a herança ou legado ao fideicomissário. O fiduciário recebe a herança ou legado sob condição resolutiva, uma vez que a titularidade daqueles não é do fiduciário, mas será do fideicomissário. Daí concluir-se que na transmissão dos bens e/ou direitos ao fideicomissário não há, sob o aspecto jurídico da sucessão hereditária – transmissão da herança ou legado – posto que o fiduciário não é o titular destes, mas sim o fideicomitente ou simplesmente o de cujus. Trata-se, destarte, de uma única transmissão testamentária, que se verifica entre o fideicomitente e o fiduciário. A norma padrão de incidência do ITCD (Imposto sobre Transmissão causa mortis e doação) tem como critério temporal o momento em que se dá a transmissão dos bens e/ou direitos. Significa afirmar que ocorrido o fato no mundo fenomênico que se subsuma à hipótese de incidência descrita na norma jurídica instituidora do gravame, dá-se a fenomelogia da incidência, juridicizando o fato e tornando-o, conseqüentemente, fato jurídico. É claro que esse fato somente será jurídico no plano abstrato das argumentações, porquanto apenas adentrará ao mundo do Direito 2 quando formalizado em linguagem por um agente competente. Diz-se agente competente para tanto aquele que efetua o lançamento do tributo. O lançamento no imposto causa mortis classifica-se como por declaração. Entende-se este como o lançamento em que há participação tanto do contribuinte como da Fazenda Pública para o fim de efetuar o ato de lançamento. O sujeito passivo é aquele que está num dos pólos da relação jurídico-tributária, representando um titular de dever jurídico para com a Fazenda Pública respectiva. Geraldo Ataliba assevera que “sujeito passivo é a pessoa que fica na contingência legal de ter o comportamento objeto da obrigação, em detrimento do próprio patrimônio e em favor do sujeito ativo. É a pessoa que terá diminuição patrimonial, com a arrecadação do tributo.” 3 Denota-se, pois, que sujeito passivo é aquele que tem íntima relação com o fato jurídico tributário, ou melhor, “o critério para a determinação do sujeito passivo está na hipótese de incidência.” 4 Dino Jarach assenta que “os sujeitos da relação tributária não são um elemento a priori, nem desvinculado do pressuposto de fato objetivo. Não há uma relação intersubjetiva, com prescindência da obrigação tributária concreta, que surge da verificação dos fatos definidos pela lei.” 5 Nos impostos, como in casu, o sujeito passivo deve ser a pessoa que tenha relação direta ou indireta com a hipótese de incidência, revelando tal situação a capacidade contributiva pelo fato jurídico tributário. Na verdade, o contribuinte é aquele que tem a titularidade da capacidade contributiva onerada, isto é, que arca financeiramente com o recolhimento do tributo aos cofres públicos. Cleber Giardino, resumidamente, esclarece sobre o tema: “Em princípio, só pode ser posta, pelo legislador, como sujeito passivo das relações obrigacionais tributárias, a pessoa que – explícita ou implicitamente – é referida pelo texto constitucional como destinatário da carga tributária. Será sujeito passivo, no sistema tributário brasileiro, a pessoa que provoca, desencadeia ou produz a materialidade da hipótese de incidência de um tributo (como inferida da constituição) ou quem tenha relação pessoal e direta – como diz o art. 121, parágrafo único, I, do CTN – com essa materialidade. Efetivamente, por simples comodidade ou por qualquer outra razão, não pode o Estado deixar de colher uma pessoa, como sujeito passivo, para discricionária e arbitrariamente colher outra.” 6 No caso do fideicomisso, há dois momentos diversos que devem ser atentados em relação à incidência do ITCD: 1º) na transmissão ou doação causa mortis de bens ou direitos e instituição de fideicomisso; e 2º) na transmissão causa mortis de bens ou direitos do fiduciário ao fideicomissário, quando aquele falecer antes deste. Na realidade, a lei estadual de Mato Grosso do Sul instituiu dois momentos, que não aqueles, como critério temporal da incidência do ITCD. Ou seja, dispôs que poderá ocorrer a incidência tanto na instituição de fideicomisso como na sua substituição. Porém, denota-se que há uma redação equivocada, no que pertine ao instituto do fideicomisso, uma vez que tanto dispõe da instituição como da substituição do mesmo na relação jurídica tributária. Ora, ou é um ou é outro para efeitos tributários. Não pode o imposto incidir duas vezes sobre um mesmo fato. O fato que se está tributando não é a instituição do fideicomisso, mas sim a transmissão causa mortis ou doação de bens ou direitos. Este sim é o fato jurídico tributário; e ele só ocorre uma única vez, entendida as relações jurídicas de per si. Mesmo porque a Lei Complementar nº 5.172/66 prescreve, em seu artigo 123, que as convenções particulares, relativas ao sujeito tributário, ou à responsabilidade tributária, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal daquele. Como dito, o fato jurídico importante para o Sistema Jurídico Tributário é a transmissão causa mortis e a doação de bens ou direitos e não a instituição de fideicomisso. A instituição deste não faz com que aquele fato jurídico deixe de ser o fato importante à análise tributária, à incidência da norma jurídica tributária. Aquele é um instituto de ordem eminentemente privada que não interfere no fato jurídico tributário pela norma jurídica do ITCD. Assim, ocorrido o fato jurídico tributário, o sujeito passivo da respectiva obrigação será aquele que receber os bens ou direitos e deles puder se aproveitar, isto é, aproveitar vantagem econômica: diga-se usar, gozar e dispor da coisa ou direito. Destarte, conclui-se que o sujeito passivo da aludida obrigação tributária será o fideicomissário, embora o critério temporal para incidência do aludido imposto seja o tempo da morte do fideicomitente (abertura da sucessão). Isto porque a transmissão da herança somente ocorre quando o titular do direito ou do bem o transmite em decorrência da sua morte; este é o fato jurídico tributário. Em verdade, o fato “causa mortis” mostra-se como o fato determinante para a incidência do referido tributo; é o “ato de última vontade” a expressão integrante da hipótese de incidência e conseqüentemente do conceito do fato jurídico tributário. Não há fato jurídico importante para o mundo do Direito Tributário, quando da transferência do bem ou do direito do legatário ao fideicomissário, uma vez que não há transferência por “causa mortis”, ou seja, em decorrência de herança. Assim, pode-se afirmar que a “causa mortis” é o núcleo da hipótese de incidência do ITCD. Ademais, outra situação há em que o ITCD pode incidir sobre o fato, dentro desse mesmo liame jurídico, porém decorrente, lógico, de outra relação jurídica. É o caso em que, já estando o fiduciário de posse do bem ou direito, este legatário falece antes de transmitir o bem ou direito ao fideicomissário. Neste caso, ocorrerá a transmissão causa mortis da titularidade do bem ou direito ao fideicomissário, que embora tenha como fato preponderante a “causa mortis”, não há subsunção do conceito do fato ao conceito da norma. Muitos, e até mesmo a legislação vigente, entendem que há incidência do ITCD neste caso e o sujeito passivo desta obrigação tributária será o fideicomissário, contudo não podemos nos esquecer que o fiduciário não tem a titularidade do domínio do bem ou direito, nem tampouco expressa um “ato de última vontade” sobre a transferência desse bem ou direito, uma vez que esse “ato” já foi manifestado pelo fideicomitente, quando da sua morte. Este sim é o titular do bem ou do direito; somente ele pode efetivar a transferência, que nesse caso se dá por sucessão causa mortis. Não há, pois, que se falar em incidência do ITCD em nenhuma das três modalidades de fideicomisso: nem o vitalício, nem o a termo, nem o condicional, porque em todos eles não há sucessão causa mortis por “ato de última vontade” do fiduciário, mas sim do fideicomitente, o qual expressou, claramente, sua vontade e instituiu o fideicomisso. Todavia, reafirmamos: não há, de idêntico jaez, incidência do ITCD na instituição do fideicomisso, e sim na sucessão causa mortis, ou seja, no momento da morte do fideicomitente. Então, o critério temporal do referido tributo é o momento em que se deu a morte do testador. Desta feita, conclui-se que o ITCD, neste caso, incide no momento da transferência do patrimônio ao fideicomissário e não da abertura da sucessão (morte do fideicomitente), como nas demais situações abarcadas pela incidência do referido imposto. O verdadeiro herdeiro é o fideicomissário. Este, sim, é o sujeito passivo da obrigação tributária em apreço. Na verdade, o pagamento pelo fiduciário antecipa uma relação jurídica tributária que ainda não instaurou-se no mundo abstrato: não há fato jurídico tributário, nem sujeito passivo. Ou seja, faltam os elementos da regra-matriz de incidência tributária; então, não há que se falar em relação jurídico-tributário, nem muito menos em direito subjetivo do Fisco e dever jurídico do contribuinte. Inobstante isso, pode ocorrer que o fideicomissário faleça antes do fiduciário, caso seja vitalício o fideicomisso; ou faleça antes de ocorrido o termo ou a condição resolutiva. Nestes casos, o bem ou o direito consolida-se no fiduciário, que passa então, a ser o verdadeiro herdeiro, se o testador não dispôs de modo diverso (artigo 1.735, do Código Civil), ou pela exclusão por indignidade, incapacidade ou falta de legitimação (artigos 1.718 e 1.719, ambos daquela codificação civil). Aí podemos afirmar que a relação jurídica tributária instaurar-se-á num plano de abstração, e o sujeito passivo da referida obrigação será o fiduciário, porque, in casu, houve a legítima sucessão causa mortis por disposição legal e aceitação da herança pelo fiduciário. Outra situação há em que o fideicomissário pode ou não aceitar a herança por algum empecilho legal, ou por ato de sua própria vontade, caso em que o testador, prevendo tal hipótese, ou por previsão legal (artigo 1.740, do Código Civil) pode instituir um outro substituto para sucedê-lo. Essa substituição é chamada compendiosa e é aceita, porque continua sendo do segundo grau a sucessão. Aí esse novo substituto é que será o sujeito passivo do ITCD. Denota-se, pois, que o sujeito passivo do ITCD, nos casos de fideicomisso, pode variar segundo a situação, devendo atentar-se sempre à ocorrência efetiva da transmissão do patrimônio causa mortis por um ato de última vontade, através do qual tem-se o legítimo herdeiro de posse e titularidade daquele patrimônio. 1 “Causa mortis” é um termo em latim que significa causa da morte. Com o sentido de causado pela morte é empregado na expressão “imposto causa mortis”, que onera as transmissões de heranças. Atos causa mortis são os atos de última vontade, ou atos cujos efeitos só se verificam com a morte do seu autor. Opõe-se a inter vivos (entre vivos). SOILBELMAN, Leib. Enciclopédia do advogado. Rio de Janeiro: Thex, 1995. ed.5. p.65. 2 Direito aqui entendido como direito positivo, isto é, conjunto de normas válidas e vigentes, que prescreve condutas para uma dada população, num certo território e espaço de tempo, sancionando-as. 3 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 1999. 5.ed. p. 77. 4 Ibidem. p.79. 5 Estruturas e elementos da relação jurídica tributária. In RDP. v.16. p.337. 6 Apud in ob.cit. p.78.