A RAZOABILIDADE CONSTITUCIONAL
[n](o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos)[/n] André L. Borges Netto Advogado em Campo Grande/MS. Professor Universitário. Mestre e Doutorando em Direito Constitucional (PUC/SP). SUMÁRIO: I – Introdução. II – A supremacia hierárquica das normas constitucionais. III – Interpretação jurídica (algumas noções). IV – O resultado da interpretação jurídica será apenas um dos resultados possíveis. V – A importância da interpretação sistemática. VI – O devido processo legal e a razoabilidade constitucional: origem e evolução histórica. VII – O devido processo legal adjetivo e substantivo: surge a razoabilidade constitucional. VIII – Caso concreto analisado à luz da razoabilidade constitucional: a questão da conversão obrigatória dos depósitos judiciais relativos a tributos. IX – Caso concreto analisado à luz da razoabilidade constitucional: a questão das passagens gratuitas de ônibus. X – Conclusões. Bibliografia I – INTRODUÇÃO Como conclusão da disciplina “Processo Administrativo” resolvemos desenvolver a título de monografia o tema da RAZOABILIDADE CONSTITUCIONAL, longamente estudado durante o semestre, especialmente quando se abordou em inúmeras aulas o princípio do devido processo legal. Trata-se de tema dos mais ricos, vindo elencado na Constituição pátria (art. 5º, inciso LIV), não havendo mesmo como compreender temas importantes do Direito sem o recurso à razoabilidade constitucional, tudo porque, por exemplo, “não se pode conceber a função administrativa, o regime jurídico administrativo, sem se inserir o princípio da razoabilidade. É por meio da razoabilidade das decisões tomadas que se poderão contrastar atos administrativos e verficar se estão dentro da moldura comportada pelo Direito” . Durante as aulas foram abordadas algumas questões práticas, o que me levantou a hipótese de abordar a razoabilidade constitucional diante de situações concretas, até para dar razão a autores de nomeada (como Tércio Sampaio Ferraz), quando se sustenta a necessidade de o estudo do Direito estar vinculado à prática, voltando-o à decidibilidade de conflitos. É isto o que fizemos, esperando ter revelado o conhecimento obtido durante este proveitoso semestre de estudos. Analisando a Constituição, buscaremos extrair os múltiplos relacionamentos advindo da compreensão da razoabilidade, daí sendo extraídas as conclusões ao final apresentadas. II – A SUPREMACIA HIERÁRQUICA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS Quando se elege como objeto de estudo um tema extraído da Constituição deve ser destacada a relevância da proposta, dado que se estará tirando conclusão do Texto Jurídico que domina o cenário jurídico, em razão da supremacia hierárquica das normas jurídicas ali estabelecidas. É pacífico o entendimento de que a importância do estudo da Constituição reside na reconhecida superioridade hierárquica de suas normas em relação às demais normas que constam de nosso direito positivo ou do nosso sistema jurídico-positivo (conjunto de atos normativos expedidos pelo Estado). Um ponto é certo: a Constituição é o complexo de normas fundamentais de um dado ordenamento jurídico, ou a ordem jurídica fundamental da comunidade, como diz Konrad Hesse, acrescentando, ainda, que “a Constituição estabelece os pressupostos da criação, vigência e execução das normas do resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente seu conteúdo, se converte em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade em seu conjunto, no seio do qual vem a impedir tanto o isolamento do Direito Constitucional de outras parcelas do Direito como a existência isolada dessas parcelas do Direito entre si mesmas”. Por ser a Constituição, vista aqui no seu conteúdo normativo, “aquele complexo de normas jurídicas fundamentais, escritas ou não escritas, capaz de traçar as linhas mestras do mesmo ordenamento”, é que se dá a ela a denominação de Lei Fundamental, porque nela é que estão exarados os pressupostos jurídicos básicos e necessários à organização do Estado, além da previsão das regras asseguradoras de inúmeros direitos aos cidadãos, colocando-se, em razão disso, como base, ponto de partida e fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio. É o que, com palavras bem mais precisas e elegantes, tem ensinado nosso mestre Celso Ribeiro Bastos, ao analisar a questão da inicialidade fundamentante das normas constitucionais: “Como sobejamente conhecido, as normas constitucionais fundam o ordenamento jurídico. Inauguram a ordem jurídica de um dado povo soberano e se põem como suporte de validade de todas as demais regras de direito. São normas originárias, fundamentantes e referentes, enquanto que as demais se posicionam, perante elas, como derivadas, fundamentadas e referidas. Aquelas de hierarquia superior, e estas, logicamente de menor força vinculatória”. O jusfilósofo Hans Kelsen, por sua vez, ao dissertar sobre a Constituição no exercício do papel de fundamento imediato de validade da ordem jurídica, explica o porquê de tal raciocínio: “O Direito possui a particularidade de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se por forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda — em certa medida — o conteúdo da norma a produzir. Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior; a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior”. Considerada dessa maneira, a Constituição é a referência obrigatória de todo o sistema jurídico, inclusive dela própria, uma vez que estabelece no seu próprio corpo as formas pelas quais poderá ser reformada (por intermédio do processo de emenda ou de revisão, na atual Carta Magna brasileira), daí surgindo a noção de hierarquia entre as normas jurídicas, de tal sorte que normas de grau superior são as que constam das Constituições (Constituição Federal, Constituições dos Estados-Membros e Leis Orgânicas Municipais, sendo que as duas últimas também se submetem à primeira) e normas de grau inferior são as veiculadas por intermédio de leis ordinárias, leis complementares, medidas provisórias etc. Em razão dessa superioridade, devem ser extirpados do ordenamento jurídico em que exista uma Constituição em vigor quaisquer atos contrários a ela que tenham a pretensão de produzir efeitos jurídicos, inexistindo lugar, inclusive, para regras jurídicas que pretendam ser superiores à própria Constituição ou que, sendo normas constitucionais originárias, sejam inconstitucionais. Digno de menção é este trecho da lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira: “A Constituição ocupa o cimo da escala hierárquica no ordenamento jurídico. Isto quer dizer, por um lado, que ela não pode ser subordinada a qualquer outro parâmetro normativo supostamente anterior ou superior e, por outro lado, que todas as outras normas hão-de conformar-se com ela. “………………………………………………………………………………….. “A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo, de modo a eliminar as normas que se não conformem com ela”. Assim sendo, toda e qualquer norma, seja de direito público, seja de direito privado, que contrariar comando constitucional, será tida por inconstitucional, sendo norma inválida perante o sistema normativo, devendo ser expulsa do mesmo de acordo com os mecanismos processuais existentes (controle da constitucionalidade difuso e concentrado). À supremacia das normas constitucionais todas as demais normas devem adequar-se. Mais uma vez é Hans Kelsen quem bem explica a propalada superioridade hierárquica da Constituição, ensinando-nos que “a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental pressuposta. A norma fundamental — hipotética, nestes termos — é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”. III – INTERPRETAÇÃO JURÍDICA (ALGUMAS NOÇÕES) É sabido que na base de todo e qualquer problema de natureza jurídica está a questão da interpretação. O professor, o magistrado, o advogado, enfim, todo e qualquer operador do Direito, para extrair alguma noção de uma ou mais normas jurídicas, precisa, de antemão, interpretá-las, fixando o sentido ou o significado jurídico das normas objeto de questionamento, visando demarcar o seu campo de incidência. Eis a razão pela qual julgamos ser necessário constar do início de nosso estudo um espaço dedicado à interpretação das normas jurídicas, sendo certo, porém, que, por ser outro o objetivo principal de nossas indagações, apreciaremos o tema apenas para delinear algumas das linhas mestras da HERMENÊUTICA, naquilo que for aplicável ao nosso tema principal. Partimos da premissa de que o intérprete se vê diante de várias significações possíveis para as normas analisadas, exatamente em razão do sentido verbal das mesmas não ser unívoco, pois o legislador, ao transformar em normas o fruto de suas valorações políticas, utiliza-se da linguagem natural, que é caracterizada pela vagueza e ambigüidade, além de sua textura aberta, razões pelas quais normalmente as prescrições legais são imprecisas, embaraçando, muitas vezes, a transmissão clara das mensagens normativas. Correto parece ser, no labor científico, verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte, para desvendar aquelas que foram erigidas em princípios gerais regentes desse mesmo sistema, vetores estes que serão de grande utilidade para a solução dos questionamentos que levantaremos a propósito da questão do conflito de normas constitucionais. De algo, porém, estaremos sempre atentos, em razão disto ser uma das premissas básicas de todo e qualquer estudo científico, qual seja: o Direito, como ordem normativa da conduta humana, merece ser interpretado sem arbitrariedades, onde o jurista dogmático, visando compreender suas normas para bem descrevê-las (pois não é sua tarefa julgar as normas do ordenamento), sempre deverá reter na memória a noção de que devem ser respeitados os limites oferecidos pela própria norma, no sentido de não se chegar a uma interpretação “contra legem”. Sabemos que este limite não é claro, não estando nem muito menos delimitado com a precisão necessária, mas a questão é de não se ultrapassar o conteúdo jurídico oferecido pela normas interpretadas. Referido destaque parece ser importante, na medida em que, na atualidade de nosso mundo jurídico, muitas são as teses e discussões doutrinárias que colocam o justo em situação de prevalência em face do Direito, o que supomos ser incorreto, principalmente quando essas mesmas teses acabam sendo aceitas por aqueles que transformam as normas gerais e abstratas em normas individuais e concretas, por intermédio das decisões e sentenças, que são os magistrados. Com tal afirmação, queremos deixar certo que A NORMA JURÍDICA É A BALIZA DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA DO JURISTA DOGMÁTICO, algo que é assim colocado para que se respeitem as vigas mestras do sistema jurídico pátrio, que são os princípios da certeza e da segurança jurídica, além do tradicional princípio da tripartição das funções estatais. Tal posicionamento, longe de derivar de posições meramente opinativas, deflui do que sempre foi ensinado pela doutrina mais autorizada, como é o caso da seguinte lição de Carlos Maximiliano, “verbis”: “Cumpre evitar {o intérprete}, não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais este se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos. “A interpretação deve ser objetiva, desapaixonada, equilibrada, às vezes audaciosa, porém não revolucionária, aguda, mas sempre atenta respeitadora da lei”. “”Toda inclinação, simpática ou antipática, enfraquece a capacidade do intelecto para reconhecer a verdade, torna-o parcialmente cego. A ausência de paixão constitui um pré-requisito de todo pensamento científico””. Não é nosso propósito, aqui, destacar todas as regras de interpretação das normas constitucionais a serem objeto de análise. Limitaremos essas colocações iniciais somente àquilo que julgamos necessário à correta análise da questão vinculada a princípios e regras constitucionais, tema principal de nossa investigação científica. Ademais, em matéria de interpretação do Direito, não parece ser possível estabelecer princípios rígidos ou uma escala de precedência entre os diversos métodos existentes, pois não há subordinação ou hierarquia entre os vários recursos da hermenêutica, de vez que “a teoria da interpretação há de contentar-se com fornecer diretivas um pouco mais vagas e plásticas que, sem abandonarem o intérprete a um empirismo incontrolado, alguma coisa peçam todavia à delicadeza e à finura do seu senso jurídico”. Levaremos em conta tais ensinamentos quando da apreciação dos casos concretos a serem abordados à luz da razoabilidade constitucional.